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Edição Nº 19 - Uneb

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Valores civilizatórios afro-brasileiros, políticas educacionais e currículos escolares<br />

Abordar o tema dos valores civilizatórios, seja<br />

na sociedade brasileira ou em qualquer outra<br />

sociedade com características pluriculturais semelhantes,<br />

não é tarefa de pouca dificuldade, sobretudo<br />

quando nos ocupamos em identificar<br />

seus conteúdos e significados amplos a partir de<br />

um referencial circunscrito a um universo cultural,<br />

por definição de pouca precisão, no caso que<br />

nos interessa, o universo cultural afro-brasileiro.<br />

Sendo assim, antes mesmo de propormos formas<br />

de introduzir os valores civilizatórios afrobrasileiros<br />

na elaboração dos currículos escolares,<br />

convém especificarmos, ainda que brevemente,<br />

qual a nossa compreensão do tema e,<br />

sobretudo, deixar clara a posição teórica que<br />

referencia essa nossa compreensão.<br />

Se tão somente considerarmos os traços notórios<br />

da presença africana no Brasil – da língua<br />

à densidade numérica, da arte à religiosidade –,<br />

dada a extensão e significado desta presença,<br />

pensar em valores civilizatórios afro-brasileiros<br />

é quase o mesmo que pensar em valores<br />

civilizatórios nacionais. Perguntaríamos, então:<br />

qual a forma mais adequada de caracterizar os<br />

fundamentos e significados de determinadas práticas<br />

que envolvem os descendentes de africanos<br />

no Brasil que, no conjunto, nos possibilite<br />

atribuir-lhes o estatuto de valores civilizatórios,<br />

ou seja, uma reunião articulada de proposições<br />

éticas, relacionais e existenciais que responde por<br />

uma especificidade no interior da chamada civilização<br />

brasileira?<br />

O caminho mais seguro e, certamente, o mais<br />

usual é o esforço em identificar, no interior do<br />

complexo cultural brasileiro, sobretudo através<br />

da interpretação dos significados mais amplos<br />

das manifestações hegemonizadas numérica ou<br />

culturalmente pelas populações negras, recriações<br />

cosmológicas herdadas de sociedades africanas<br />

pré-coloniais ou mesmo similares às dimensões<br />

culturais mais profundas das sociedades<br />

africanas contemporâneas.<br />

Evidentemente, por ser a sociedade brasileira<br />

composta na sua grande maioria por afrodescendentes,<br />

há um número considerável dessas<br />

recriações que nos une ao continente africano<br />

de forma inexorável. Alguns exemplos conhecidos<br />

e presentes na bibliografia especializada<br />

podem ser aqui enumerados: as concepções<br />

diferenciais de morte e ancestralidade; o significado<br />

cosmológico da vida humana e da relação<br />

com a natureza; a oralidade como forma<br />

privilegiada da comunicação e transmissão dos<br />

saberes, bem como o valor da palavra e o caráter<br />

sagrado de todas as dimensões da existência<br />

humana.<br />

Não obstante a necessária identificação desses<br />

valores, cremos ser de igual ou de maior<br />

importância considerarmos a forma como os<br />

concebemos. A elevação desses valores a verdadeiros<br />

redentores da nossa dignidade e identidade,<br />

aviltadas pela supremacia dos valores<br />

brancos hegemônicos, mesmo que cumpra a<br />

função de um recurso político contra-hegemônico,<br />

imediato e igualmente reconfortante para<br />

a nossa subjetividade individual e coletiva, não<br />

pode obscurecer nossa visão em relação ao risco<br />

muito provável de incorrermos nas armadilhas<br />

dos essencialismos, na reprodução não refletida<br />

desses valores como conteúdos inalterados<br />

de uma tradição supostamente imune às<br />

injunções do tempo. A desatenção ao imperativo<br />

da história, com suas mudanças e permanências<br />

no continuum temporal, no mínimo, pode levar<br />

a cristalização de valores absolutamente<br />

extemporâneos em relação às características e<br />

demandas da contemporaneidade.<br />

Pensar a historicidade dos valores civilizatórios<br />

afro-brasileiros como forma de aumentarmos<br />

a sua eficácia no sentido daquilo que<br />

definirmos como nossas principais demandas de<br />

ordem política, cultural, racial ou, como prefiro,<br />

da ordem da necessidade de edificação de uma<br />

cultura política afro-descendente, implica em um<br />

esforço intelectual de retomada da nossa história<br />

através, principalmente, do trabalho de construção<br />

da nossa memória social própria, em<br />

conjunto com a crítica da memória social que<br />

a supremacia branca ocidental nos legou como<br />

herança, e que, na maioria das vezes, reproduzimos<br />

com pouca consciência acerca das suas<br />

formas, conteúdos e efeitos reiteradores de uma<br />

economia de relações raciais, calcada na pressuposição<br />

da nossa inferioridade.<br />

230 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 229-234, jan./jun., 2003

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