Edição Nº 19 - Uneb
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Wilson Roberto de Mattos<br />
Não se trata simplesmente de contrapor de<br />
forma maniqueísta e ingênua, à memória social<br />
herdada, uma outra memória social e racial positiva<br />
e supostamente superior. Qualquer tentativa<br />
de substituir uma supremacia racial por<br />
outra, além de ser historicamente improvável, é<br />
igualmente condenável. Trata-se, sim, de ativar<br />
a possibilidade de dar expressão e significado a<br />
conteúdos históricos concretos silenciados pelas<br />
memórias dominantes, trazer à cena e<br />
positivar os conteúdos não codificados pelas linguagens<br />
convencionais, ressignificar as sociabilidades<br />
não-hegemônicas e as múltiplas<br />
temporalidades do viver cotidiano. Em palavras<br />
mais ousadas, trata-se de construir e divulgar<br />
concepções e pressupostos capazes de reorientar<br />
a nossa compreensão do nosso próprio passado<br />
– e, se preciso, mudá-lo na forma como<br />
ele se nos mostra –, à luz consciente de um<br />
projeto político e civilizacional contemporâneo,<br />
ao mesmo tempo emancipador e anti-racista.<br />
São de um eminente judeu levado à morte por<br />
uma insidiosa perseguição racista, os seguintes<br />
excertos sobre a história:<br />
Articular historicamente o passado não significa<br />
conhecê-lo como ele foi de fato. Significa apropriar-se<br />
de uma reminiscência, tal como ela relampeja<br />
no momento de um perigo (...). O dom de<br />
despertar no passado as centelhas da esperança<br />
é privilégio exclusivo do historiador convencido<br />
de que também os mortos não estarão em<br />
segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo<br />
não tem cessado de vencer. (...) existe um encontro<br />
secreto, marcado entre as gerações precedentes<br />
e a nossa. Alguém na terra está à nossa<br />
espera. Nesse caso, como a cada geração, foinos<br />
concedida uma frágil força messiânica para<br />
qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não<br />
pode ser rejeitado impunemente. (BENJAMIN,<br />
<strong>19</strong>87, p. 222-232)<br />
O passado do povo negro brasileiro tem-nos<br />
feito apelos incessantes, cabe a nós configurarmos<br />
os quadros que podem dar-lhe visibilidade<br />
significativa para além do que as narrativas<br />
dominantes estabeleceram como sua “verdade”.<br />
Os nossos mortos não descansarão em<br />
paz, enquanto não nos apropriarmos da memória<br />
de suas vidas conectando-as às nossas lutas<br />
presentes.<br />
Embora o passado africano, tanto pré como<br />
colonial e pós-colonial, componha um amplo<br />
repertório de temas e processos que devemos<br />
enfrentar a partir de novas configurações interpretativas<br />
afinadas com as nossas reais demandas,<br />
e isso é uma necessidade inadiável eu, particularmente,<br />
considero de igual urgência uma<br />
revisitação crítica e politicamente orientada sobre<br />
as experiências negras em terras brasileiras<br />
e, dentre estas, a principal delas, a experiência<br />
traumática da escravidão. Justifico: dos<br />
cinco séculos de história, a partir do nosso ingresso<br />
involuntário no mundo moderno, quase<br />
quatro séculos nós vivemos sob o jugo do regime<br />
escravista.<br />
Um regime de relações humano-sociais, infelizmente,<br />
tão longevo – para o bem ou para<br />
o mal, dependendo de onde nos localizamos<br />
socialmente, num país onde a desigualdade é<br />
uma perversa insistência histórica –, deixa<br />
marcas profundas e indeléveis na forma como<br />
nos concebemos como seres humanos, organizamos<br />
a nossa existência, elaboramos nossas<br />
memórias, construímos nossas identidades<br />
e nos relacionamos uns com os outros e com o<br />
real. Negligenciar a sua importância como<br />
substrato cultural na definição de papéis, relações<br />
sociais e raciais contemporâneas é abdicar<br />
da chance de formularmos nossas demandas<br />
políticas e culturais anti-racistas com maior<br />
precisão e possibilidade de êxito. Acreditar em<br />
uma ponte que nos ligue ao passado, ou mesmo<br />
ao presente africano, sem a intermediação<br />
do que a própria escravidão nos legou como<br />
herança em termos de resistência e recriações<br />
culturais relativamente originais, em nome de<br />
uma tentativa, ainda que compreensível, de<br />
apagar as marcas negativas que ela, a escravidão,<br />
cravou em nossas consciências individuais<br />
e na dinâmica das relações sociais, de<br />
um modo geral, é, para dizer o mínimo, desprezar<br />
o vigor criativo e culturalmente fecundo<br />
de um imenso contingente populacional que<br />
jamais se conformou com os limites das imposições<br />
normativas e legais.<br />
Como exemplo, para nos concentrarmos no<br />
campo da historiografia, cabe mencionar a<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 229-234, jan./jun., 2003<br />
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