Edição Nº 19 - Uneb
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Alimentação, cultura e educação: em busca de uma abordagem transdisciplinar<br />
cientes, existem significados presentes nas escolhas<br />
alimentares que são sobremaneira<br />
contextualizados. Os hábitos estão embebidos em<br />
símbolos culturais (MORIN, <strong>19</strong>73). As atividades<br />
biológicas mais elementares como o comer,<br />
o beber e o defecar estão estreitamente ligadas<br />
a normas, proibições, valores, símbolos, mitos,<br />
ritos, isto é, a tudo o que há de mais especificamente<br />
cultural (MOTA; PENNA, <strong>19</strong>91).<br />
Significados sociais diversos dados aos alimentos<br />
em diferentes sociedades são amplamente<br />
relatados na literatura antropológica. A<br />
variabilidade nos modelos de alimentação humana<br />
é grande, e às vezes as diferenças são<br />
bastantes profundas. Esses significados sociais<br />
são relatados por Paul Rozin (<strong>19</strong>98), quando<br />
descreve o papel do alimento em três sociedades<br />
muito diferentes, demonstrando a grande<br />
variabilidade que ocorre na sua função social: a<br />
sociedade norte-americana, a sociedade hindu<br />
e os Hua de Papua Nova Guiné.<br />
Observa-se, primeiro, o papel do alimento<br />
em uma sociedade ocidental moderna, os Estados<br />
Unidos. Para os americanos, o alimento tem<br />
duas principais funções: a de nutrir o indivíduo<br />
e a de servir como importante fonte de prazer.<br />
Apesar de a alimentação servir de base para<br />
interações diárias ou reuniões festivas familiares,<br />
o alimento é basicamente o que está no<br />
prato. Há uma descontextualização do alimento<br />
de várias maneiras. Os alimentos são comprados<br />
em embalagens plásticas, preparados por<br />
pessoas anônimas e cultivados em fazendas<br />
automatizadas. Para a sociedade americana, é<br />
indiferente a história particular do alimento, de<br />
onde ele vem, quem preparou, seu significado<br />
simbólico.<br />
Na Índia hindu, o alimento é um, senão o<br />
principal veículo da manutenção das distinções<br />
sociais; as crenças sobre os alimentos codificam<br />
o complexo jogo das proposições morais e<br />
sociais. A qualidade do alimento servido e as<br />
condições de servir (ordem de servir, quem<br />
come as sobras de quem) são aspectos significativos<br />
de cada refeição, o que serve para definir<br />
o status dos participantes da refeição, sendo<br />
a regra básica a ser seguida aquela que dita<br />
que a pessoa não pode aceitar alimentos preparados<br />
por membros de uma casta inferior (inversamente,<br />
membros de classes mais altas<br />
podem dar alimentos para membros de castas<br />
mais baixas). “Por exemplo, na situação doméstica<br />
e nos casamentos, os melhores alimentos<br />
qualitativos são servidos mais cedo e anteriormente<br />
aos homens e para aqueles que são mais<br />
velhos” (ROZIN, <strong>19</strong>98, p.221).<br />
Entre os Hua de Papua Nova Guiné, conforme<br />
o mesmo autor, “trocas de alimentos são<br />
ligados à solidariedade e aliança social ou compromisso,<br />
e alimentar-se e alimento ajudam a<br />
definir o indivíduo” (p.221). A sua visão de<br />
mundo centra-se sobre o conceito de “nu”, uma<br />
essência vital veiculada principalmente pelo alimento<br />
e responsável pelo crescimento e saúde.<br />
Essa essência está contida no corpo do indivíduo<br />
e em todas as coisas contatadas por ele.<br />
Assim, qualquer alimento caçado, colhido, ou<br />
cozido por uma pessoa, contém seu “nu” ou sua<br />
essência vital. Esta crença tem sérias conseqüências<br />
na vida comunitária, porque um indivíduo<br />
pode adquirir propriedades particulares de<br />
uma pessoa pela ingestão de alimentos colhidos<br />
ou preparados por ela. Se a intenção da<br />
pessoa é hostil, causará mal, enquanto que um<br />
“nu” amigável beneficiará a saúde e o bem estar<br />
do indivíduo. Outro dado interessante é que<br />
“... os Hua praticam canibalismo. Eles consomem<br />
seus parentes, após a morte natural deles,<br />
para incorporar tanto suas virtudes específicas<br />
como suas boas intenções” (p.220).<br />
Quando se observa a eleição de alimentos<br />
comestíveis e não comestíveis dentro de uma<br />
sociedade, também chamam a atenção os mecanismos<br />
culturais subjacentes a esta escolha.<br />
Ainda que, em alguns grupos sociais, a seleção<br />
dos alimentos ocorra por razões técnicas e econômicas<br />
ou pelo gosto ou sabor, a sua importância<br />
maior parece ser a função que os alimentos<br />
desempenham na identidade individual<br />
e grupal, em detrimento inclusive do valor nutricional<br />
dos recursos alimentares disponíveis.<br />
Marshall Sahlins (<strong>19</strong>79), ao trabalhar a questão<br />
da comida na sociedade americana, sinaliza<br />
para o fato de que não se deve ater-se apenas<br />
à questão do consumo, pois a forma como é<br />
estabelecida a comestibilidade e a não-comesti-<br />
184 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 181-188, jan./jun., 2003