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Edição Nº 19 - Uneb

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Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa<br />

com a formalidade cotidiana, através da criação<br />

de um espaço especial onde todos poderiam<br />

permanecer sem preocupações de relacionamento<br />

ou filiação. Por outro lado, outros autores,<br />

a exemplo de Maria Isaura Pereira de<br />

Queiroz, afirmam que no carnaval brasileiro a<br />

ordem não é subvertida (QUEIROZ, <strong>19</strong>95). Da<br />

mesma forma, existiria uma nítida separação<br />

entre atores e expectadores e os foliões saberiam<br />

o seu lugar na festa de acordo com os papeis<br />

que desempenham.<br />

Acreditamos que, concretamente, a Lavagem<br />

do Bonfim guarda muito do segundo mundo<br />

próprio da Idade Média. A festa é “subversiva”<br />

desde a temporalidade: é um carnaval<br />

fora de época. A “lavagem” ocorre antes do<br />

Carnaval oficial e é um carnaval que questiona<br />

a ordem, desconhecendo a distinção entre<br />

atores e espectadores, todos participam efetivamente<br />

do ritual, criando um lapso espacial e<br />

temporal marcado por universalidade, liberdade,<br />

igualdade e, porque não dizer, abundância<br />

(BAKHTIN, <strong>19</strong>87, p.8). Os participantes vivem<br />

efetivamente os festejos da Lavagem do<br />

Bonfim, não são assistentes passivos. A festa é<br />

um momento de transgressão, de liberação, de<br />

abolição de hierarquias, de regras e de tabus<br />

que se mantêm renitentes no cotidiano dos<br />

baianos.<br />

Ao nosso ver, as características lúdico-festivas<br />

da Lavagem do Bonfim autorizam uma<br />

interpretação do ritual nos moldes propostos por<br />

Bakhtin (<strong>19</strong>87). Observamos que, não obstante<br />

as tentativas de enquadramento da lavagem na<br />

“ordem”, em especial as investidas da indústria<br />

cultural (ORTIZ, <strong>19</strong>89) no sentido de circunscrever<br />

os festejos numa lógica que leva em<br />

consideração as forças do mercado, a Lavagem<br />

do Bonfim resiste aos assédios da ordem.<br />

Os foliões continuam decidindo como irão participar.<br />

Os próprios organizadores, mesmo preocupados<br />

com a quebra de barreiras tidas como<br />

intransponíveis, evitam ações que firam o caráter<br />

universal da festa: a Lavagem do Bonfim<br />

é um ritual de todos os baianos. A lei que preside<br />

a festa é a lei da liberdade. A lavagem,<br />

com o seu cortejo, é um momento especial da<br />

vida dos baianos, uma festa que celebra a<br />

baianidade, concepção de vida que possui um<br />

forte conteúdo étnico/religioso, marcado por<br />

elementos da chamada identidade cultural afrobrasileira,<br />

envolvida por uma alternância entre<br />

o sagrado e o profano, uma concepção de mundo<br />

que não separa a alegria e o sagrado e a<br />

principal barreira que os participantes quebram<br />

esta ligada às relações hierárquicas vinculadas<br />

à própria Religião Católica. A marca maior da<br />

festa é a busca de uma relação mais próxima<br />

com o sagrado por parte dos participantes que<br />

saem às ruas da cidade em busca do Axé 2 , liberado<br />

pelas baianas 3 que realizam a lavagem<br />

simbólica do santuário. O clima é de alternância<br />

entre o sagrado e o profano, o clima religioso e<br />

a festa carnavalizada fazem parte do mesmo<br />

ritual. A lavagem poderia, então, ser uma espécie<br />

de “carnaval medieval” onde o sagrado<br />

confunde-se com o profano, as hierarquias são<br />

abolidas e as classes sociais e idades dos participantes<br />

se indiferenciam (BAKHTIN, <strong>19</strong>87,<br />

p.2<strong>19</strong>).<br />

O RITO<br />

Em primeiro lugar, o que é um rito? Segundo<br />

Cazeneuve ([<strong>19</strong>-?]), o rito está carregado<br />

de inércia, tributo pago em função de sua resistência<br />

à mudança. O rito é um ato que sempre<br />

permanece fiel a certas regras que constituem<br />

precisamente o que há nele de ritual, mesmo<br />

sendo bastante flexível para comportar uma<br />

margem de improvisação. Quando tomamos<br />

parte de um ritual expressamos a nossa participação<br />

em uma determinada ordem social. O<br />

ritual, segundo Durkheim (<strong>19</strong>89), está no núcleo<br />

da religião e é o que torna possível a própria<br />

ordem social e moral. A Lavagem do Bonfim<br />

é, entre outras coisas, um rito comemorativo<br />

que se insere em um determinado tempo histórico,<br />

celebrando a identidade cultural baiana,<br />

2<br />

Axé: “Energia que tudo transpassa, movimenta e possibilita.”<br />

(BERKENBROCK, <strong>19</strong>97, p.259-267).<br />

3<br />

As participantes do ritual são em sua maioria baianas do<br />

acarajé. Constatamos na pesquisa de campo que a maioria<br />

das baianas está vinculada aos terreiros das religiões afrobrasileiras.<br />

138 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003

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