Edição Nº 19 - Uneb
Edição Nº 19 - Uneb
Edição Nº 19 - Uneb
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Wilson Roberto de Mattos<br />
priram um papel decisivo, no sentido de nos orientar<br />
a pensar a escravidão e os próprios escravos<br />
para além da sua mera posição na estrutura<br />
produtiva. As interpretações pautadas<br />
nesses princípios relativizam o peso estrutural<br />
do escravismo como sistema para que os escravos<br />
possam emergir como sujeitos na história,<br />
assim como, sujeitos da sua própria história.<br />
Mas, mesmo reconhecida a importância intelectual<br />
desta virada teórico-metodológica e<br />
temática, particularmente continuo acreditando<br />
que, às nossas demandas políticas, culturais e<br />
de luta anti-racista contemporâneas, a história<br />
da África, a história da escravidão brasileira ou<br />
mesmo a história da presença da África no Brasil,<br />
através de valores recriados ou de qualquer<br />
outro expediente histórico-cultural, só farão sentido<br />
– citando uma frase significativa de Stuart<br />
Hall (<strong>19</strong>96) –, se forem recontadas através da<br />
política da memória e do desejo.<br />
Para finalizar exponho, de modo sintético,<br />
alguns aspectos iniciais, portanto provisórios, de<br />
um trabalho que tenta dar operacionalidade à<br />
conjunção entre memória e história de populações<br />
afro-descendentes, na perspectiva de uma<br />
interpretação alternativa aos postulados<br />
hegemônicos.<br />
Em execução há um ano, o projeto de pesquisa<br />
intitulado: Negras Lembranças: memórias<br />
da dor e da alegria, desenvolvido no recôncavo<br />
sul do Estado da Bahia, através dos<br />
procedimentos da história oral, tem como objeto<br />
as memórias de velhos afro-descendentes<br />
moradores da região e, como objetivos, identificar<br />
e interpretar os significados que por eles<br />
são atribuídos às suas experiências no mundo<br />
do trabalho, nas relações de parentesco e vizinhança,<br />
no universo da religiosidade, das festas<br />
e de outras formas de expressão criativas.<br />
As histórias de vida – opção inicial acerca<br />
do formato dos depoimentos –, registram em<br />
proporção significativa, fatos, práticas, processos,<br />
hábitos e concepções que configuram<br />
aquilo que Paul Gilroy (2001) codificou conceitualmente<br />
como o “sublime”, ou seja, a dimensão<br />
redentora da dor ou a capacidade criativa<br />
que as populações negras tinham, na escravidão,<br />
e têm, ainda hoje, de transformar<br />
a experiência da exclusão social, da opressão,<br />
do preconceito e da discriminação racial, em<br />
substrato cultural-existencial vívido, voltado<br />
para a afirmação positiva e celebração da vida,<br />
principalmente através da inventividade nas<br />
formas de expressão criativas como a música,<br />
a literatura, a dança e outras artes performáticas,<br />
mas também na edificação de valores<br />
humanos, ético-relacionais, cuja dimensão prática,<br />
nas lutas empreendidas cotidianamente<br />
pelas populações negras da região, são evidentes:<br />
a astúcia em arranjar cotidianamente<br />
a sobrevivência; a solidariedade como imperativo<br />
ético nas relações intra e inter-grupos;<br />
a fé na vida como possibilidade e devir, a certeza<br />
de que tudo pode melhorar.<br />
Os pressupostos básicos da pesquisa, sustentados<br />
na articulação entre memória e história,<br />
informam que as sociabilidades e modos de<br />
vida não-hegemônicos dos grupos negros<br />
pesquisados, expressos das mais variadas formas<br />
no universo amplo da cultura, produzem<br />
valores e significados que configuram identidades<br />
e conferem sentidos à sua existência social.<br />
Mais do que isso, as próprias narrativas, expressando<br />
o vivido tal qual concebido, via memória<br />
dos depoentes, indicam que essas identidades<br />
e sentidos não devem ser vistos como<br />
características definitivas ou essenciais cristalizadas<br />
de uma vez por todas, mas como resultados<br />
provisórios, porque contextuais, históricos,<br />
de um processo agonístico de resistências e<br />
acomodações em relação aos vetores impositivos<br />
dos estratos hegemônicos da cultura.<br />
Contemporaneamente, é no interior desta<br />
arena conflituosa, permeada pelas injunções da<br />
história, que se constroem e se reconstroem<br />
valores, que se avaliam as possibilidades de que<br />
esses valores contribuam para o aperfeiçoamento<br />
da nossa civilização, não só através dos processos<br />
de elaboração de políticas educacionais<br />
e currículos escolares mas, sobretudo, através<br />
de uma nova cultura política que interiorize nossa<br />
memória própria e a nossa história afro-descendente<br />
como instituidoras de novas formas<br />
de se organizar as relações humano-socias, nas<br />
diferenças e nas semelhanças.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 229-234, jan./jun., 2003<br />
233