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Edição Nº 19 - Uneb

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Valores civilizatórios afro-brasileiros, políticas educacionais e currículos escolares<br />

existência de um número considerável de estudos<br />

que, rompendo com as concepções tradicionais<br />

que levavam ao pé da letra a definição<br />

jurídica do escravo como coisa, inauguram<br />

a concepção, já hoje consensual, do papel<br />

que os escravos – e populações negras de um<br />

modo geral –, desempenharam tanto no processo<br />

que culminou na abolição, quanto no forjar,<br />

cultural e politicamente, formas possíveis<br />

de resistência e sobrevivência no interior da<br />

própria escravidão. Reconhece-se também que<br />

as possibilidades interpretativas dessa forma<br />

diferenciada de angular o processo, com suas<br />

variáveis e desdobramentos, obrigaram esforços<br />

no sentido de uma ampla revisão crítica<br />

das bases teórico-metodológicas anteriores,<br />

assim como a edificação ou adoção de postulados<br />

que, ancorados em pesquisas cuidadosas<br />

quanto à definição dos temas, periodizações<br />

e objetos, garantiram o seu rigor.<br />

No conjunto desses estudos, o binômio escravidão-liberdade,<br />

alicerçado em um conceito<br />

ampliado de resistência, possibilitou o rompimento<br />

justificado com a idéia de escravidão<br />

concebida estruturalmente e, à luz de novos<br />

significados atribuídos a termos conceituais<br />

mediadores, como por exemplo: paternalismo,<br />

hegemonia, cultura e experiência, inclusive, valores<br />

civilizatórios, facilitou o desvendamento<br />

das múltiplas variáveis da relação fundamental<br />

entre senhores e escravos.<br />

É forte a idéia de que a dinâmica das relações<br />

entre senhores e escravos – e outras formas<br />

de relações verticais correlatas, no interior<br />

de uma, digamos, economia moral paternalista<br />

que aproximava, não sem conflitos, uns e outros,<br />

em meio a resistências e arranjos de acomodação<br />

cotidianos –, forjou um espaço social<br />

no interior do qual os escravos construíram um<br />

mundo próprio, relativamente autônomo, e que<br />

também configura-se na contemporaneidade<br />

como nossa herança.<br />

Tanto esta idéia de paternalismo, quanto a<br />

de experiência como lastro histórico concreto<br />

no fazer-se das coletividades (grupais ou<br />

de classes), com implicações formativas ao<br />

nível da sua consciência e cultura, libertaram<br />

a historiografia sobre a escravidão dos esquemas<br />

interpretativos tradicionais, pouco ou nada<br />

flexíveis e, na maioria das vezes, absolutamente<br />

infrutíferos do ponto de vista da necessidade<br />

de construção de uma nova memória capaz<br />

de orientar as lutas anti-racistas contemporâneas.<br />

Alguns procedimentos historiográficos, inclusive,<br />

já avançam hipóteses mais ousadas<br />

sobre a interpretação das experiências negras<br />

no Brasil, adentrando no núcleo do que tem<br />

sido considerado como valores civilizatórios<br />

afro-brasileiros. Um exemplo é a tentativa de<br />

tematizar conteúdos pouco usuais no campo<br />

da historiografia. O historiador e professor da<br />

Universidade Estadual de Campinas, Sidney<br />

Chalhoub (<strong>19</strong>96), no capítulo intitulado Raízes<br />

culturais negras da tradição vacinophobica,<br />

do seu livro Cidade Febril, através de um<br />

método originalmente batizado por ele de “saltos<br />

e saltinhos”, emprestado à personagem<br />

machadiana Capitú, busca nas tradições africanas<br />

dos mitos das divindades da terra como<br />

Omolu/Obaluaiê (nagô) / Xapanã (jêje), valores<br />

culturais-religiosos, cuja recriação/atualização<br />

no Brasil, através das populações afro-descendentes,<br />

acredita-se, funcionou como orientadora<br />

cultural na reação popular à vacinação<br />

obrigatória contra a febre amarela no conflito<br />

conhecido como a Revolta da Vacina, ocorrido<br />

no começo do século XX, na cidade do Rio<br />

de Janeiro. Citando um outro historiador original<br />

na adoção de um método semelhante, escreve<br />

Chalhoub (<strong>19</strong>96, p.144):<br />

Robert Slenes vem demonstrando que as culturas<br />

religiosas da África Central informavam muito<br />

do que os escravos do sudeste pensavam de<br />

sua condição, sendo mesmo decisivas na articulação<br />

de formas de resistência ao cativeiro. Sendo<br />

assim o que é necessário fazer para reforçar a<br />

hipótese da importância de Omolu na resistência<br />

à vacinação, é mostrar a possibilidade real de<br />

reinterpretação desse orixá em termos dos pressupostos<br />

cosmológicos básicos dos povos da<br />

África Central.<br />

Está claro que estas concepções e inovações<br />

temáticas e teórico-metodológicas cum-<br />

232 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 229-234, jan./jun., 2003

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