Edição Nº 19 - Uneb
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Eduardo Alfredo Morais Guimarães<br />
tornam cada vez mais difíceis e os espaços são<br />
abarcados com rapidez pela lógica comercial<br />
(ORTIZ, <strong>19</strong>89). As últimas modificações introduzidas<br />
no cortejo da lavagem, em nome do<br />
respeito às tradições, amenizaram o “carnaval”<br />
retirando o som eletrizante dos trios elétricos<br />
da festa. Concretamente, as investidas da<br />
industria cultural significaram uma certa perda<br />
de sentido.<br />
A lavagem com seu cortejo se apodera de<br />
todos os espaços onde possa instalar-se: as ruas,<br />
as praças, as casas com suas varandas e quintais,<br />
tudo que serve para o encontro dos participantes.<br />
A carnavalização possui o seu aspecto<br />
de potlach endereçado às forças mágico-religiosas<br />
que dão significado ao ritual. O consumo<br />
de energias no verdadeiro delírio barroco<br />
provocado pelo som eletrizante dos trios-elétricos<br />
injeta no ritual momentos ímpares de efervescência.<br />
É a festa no sentido pleno que pode<br />
assolar e destruir, desprezando as barreiras<br />
sociais. Como nas sociedades tradicionais, não<br />
são indivíduos, e sim coletividades que se encontram<br />
e a essência do encontro é o estabelecimento<br />
de um contrato construído a partir do<br />
conceito de troca-dádiva. 7<br />
ENTRE A PRODUÇÃO E A INVENÇÃO<br />
DA CIDADE<br />
Hoje, é impossível pensar a capital do Estado<br />
da Bahia sem as suas festas populares e,<br />
acima de tudo, sem a cadência dos ritmos do<br />
povo negro. É impossível também pensar a grande<br />
maioria das festas sem suas “lavagens” e,<br />
conseqüentemente, sem as baianas que efetivamente<br />
realizam o ritual de limpeza e purificação.<br />
Por surpreendente, mesmo paradoxal, que<br />
pareça, é impossível separar estas festas das<br />
comemorações em louvor aos santos da Igreja<br />
Católica. Não é fácil, portanto, para o antropólogo,<br />
com seus olhares e ouvidos “disciplinados”,<br />
realizar uma percepção científica dos rituais<br />
que marcam a identidade da cidade do<br />
Salvador (OLIVEIRA, <strong>19</strong>98, p.18).<br />
Os espaços rituais da cidade são marcados<br />
por relações de identidade e alteridade, são lugares<br />
onde os habitantes constroem e reconstroem<br />
identidades particulares balizadas pela<br />
relações sociais cotidianas e pela história. Nestes<br />
lugares dá-se um reconhecimento da<br />
alteridade que articula a organização social. Não<br />
é possível, portanto, compreender as ações do<br />
poder público na arena da política cultural sem<br />
analisar de perto a sua participação na organização<br />
destes espaços rituais.<br />
O reconhecimento do caráter negro da cidade<br />
do Salvador já faz parte do discurso oficial.<br />
As manifestações culturais do povo negro<br />
são a “alma” da cidade, afirmam dirigentes de<br />
órgãos de turismo veiculados ao poder municipal.<br />
No entanto, toda esta cultura é também<br />
folclore, verdadeira prisão reservada ao povo<br />
negro alegre e festeiro, qualidades atribuídas<br />
geneticamente ao grupo a partir da raça, apimentadas,<br />
portanto, com concepções racistas<br />
(MONTES, <strong>19</strong>96, p.53). Assim, as elites brancas<br />
que governam a cidade convivem com esta<br />
gente que, além de ser maioria, consegue redefinir<br />
a cidade como um lugar de identidade partilhada,<br />
habitado majoritariamente pelo povo<br />
negro, a Roma Negra, segundo intelectuais e<br />
ativistas do próprio movimento negro. Mas, os<br />
poderes públicos agem também no sentido de<br />
conter os excessos, pois em algum momento<br />
eles poderão efetivamente acrescentar às suas<br />
“qualidades” características indesejáveis ao tentar<br />
escapar à prisão reservada aos marginalizados.<br />
A partir dos últimos anos do século XX os<br />
poderes públicos começaram a atuar com muito<br />
mais vigor na organização dos espaços rituais,<br />
buscando circunscrever as manifestações<br />
a partir de uma identidade negra particular da<br />
cidade. Os órgãos de turismo passaram, então,<br />
a intervir diretamente na estrutura organizativa<br />
7<br />
O termo potlach é utilizado aqui em conformidade com<br />
o trabalho de Marcel Mauss “Ensaios sobre o dom”<br />
(<strong>19</strong>74). Mauss retirou o termo da língua chinook. O seu<br />
significado é essencialmente alimentar, consumir e está<br />
ligado a uma forma de troca, uma troca-dádiva que possui<br />
como função primordial unir grupos e afastar hostilidades.<br />
Com a utilização do termo procuramos realçar o caráter<br />
agonístico do ritual, observado na exuberância e na<br />
fartura que marcam a atuação dos grupos nos principais<br />
momentos da festa.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003<br />
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