digital - Comunidade Virtual de Antropologia
digital - Comunidade Virtual de Antropologia
digital - Comunidade Virtual de Antropologia
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Oscar Calavia Sáez<br />
em objeto. Não, simplesmente o objeto <strong>de</strong> pesquisa é um ente que vive<br />
na ciência.<br />
Com certeza também, <strong>de</strong>vemos diferenciar o objeto <strong>de</strong> pesquisa dos<br />
propósitos pragmáticos da pesquisa. Isso po<strong>de</strong> acontecer com alguma<br />
freqüência numa ciência on<strong>de</strong> não se escon<strong>de</strong>m os alvos éticos ou<br />
políticos. “Contribuir ao estudo ou à erradicação do preconceito contra<br />
a comunida<strong>de</strong> gay” ou “Incentivar um reforço da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> étnica ou<br />
um resgate da cultura dos índios X, ou dos ciganos Z” po<strong>de</strong>m ser<br />
propósitos da pesquisa. Queira-se ou não, diga-se ou não, todo<br />
pesquisador tem lá seus propósitos, alem do propósito <strong>de</strong>fault que é<br />
tornar-se doutor. Mas para fazer isso <strong>de</strong>veria ter antes seu objeto <strong>de</strong><br />
pesquisa, que é outra coisa.<br />
O quê é um objeto <strong>de</strong> pesquisa, então? O objeto se situa nesse limite<br />
entre o mundo das <strong>de</strong>scrições já feitas por outros cientistas e as<br />
possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> altera-las. O objeto é esse fragmento do discurso<br />
cientifico que preten<strong>de</strong>mos alterar com a ajuda da nossa experiência e<br />
nossa agu<strong>de</strong>za. Se abordamos um tema clássico o nosso objeto <strong>de</strong>ve<br />
reformar o que já se disse a seu respeito; se abordamos um tema<br />
inédito, o objeto será a reorganização que ele impõe no conjunto dos<br />
temas já conhecidos.<br />
Joguemos com um exemplo muito clássico. Jamais li o projeto que,<br />
muito provavelmente, escreveu Evans-Pritchard antes <strong>de</strong> conseguir os<br />
financiamentos necessários e partir em direção à terra dos Nuer. Mas<br />
po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>duzir sem muita margem <strong>de</strong> erro os elementos <strong>de</strong> tal<br />
projeto.<br />
O tema é <strong>de</strong> sobra conhecido: consta do título e do subtítulo, on<strong>de</strong> é<br />
<strong>de</strong> praxe fazer constar também as al<strong>de</strong>ias nas quais foi feita a pesquisa.<br />
Dos propósitos sabemos algo também: os financiadores <strong>de</strong> Evans-<br />
Pritchard queriam saber mais da organização política dos Nuer. Eram<br />
estes um povo irrequieto, que intranqüilizava o governo do Sudão<br />
Anglo-Egípcio. O governo <strong>de</strong>sejava controla-los melhor, e para isso<br />
queriam saber on<strong>de</strong> agarrar ou golpear: quem, em último temo, era o<br />
chefe nessa socieda<strong>de</strong> aparentemente anárquica. O próprio Pritchard<br />
provavelmente não estava muito a fins <strong>de</strong> colaborar com esse<br />
propósito, e quiçá por isso exagerou o aspecto anárquico dos Nuer e se<br />
esforçou em minimizar o po<strong>de</strong>r efetivo dos “chefes <strong>de</strong> pele <strong>de</strong><br />
leopardo”: o qual era coerente com um propósito muito comum na<br />
história da antropologia, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> buscar mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong><br />
alternativos.<br />
Ora, nada disso que vamos citando seria ainda o objeto <strong>de</strong> pesquisa<br />
<strong>de</strong> Pritchard. O seu objeto <strong>de</strong> pesquisa do primeiro po<strong>de</strong>ria se <strong>de</strong>finir<br />
mais ou menos assim: a sociologia ten<strong>de</strong> a consi<strong>de</strong>rar as socieda<strong>de</strong>s<br />
como coletivos <strong>de</strong> indivíduos unidos e estruturados por um conjunto<br />
<strong>de</strong> normas, escritas ou não mas em qualquer caso explícitas, que<br />
<strong>de</strong>terminam a distribuição do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>las; há, no entanto,<br />
socieda<strong>de</strong>s como a dos Nuer que, ao que parece, conseguem se<br />
governar sem esse tipo <strong>de</strong> distribuição, socieda<strong>de</strong>s acéfalas cuja<br />
existência indica que uma socieda<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria ser outra coisa muito<br />
diferente daquilo que a sociologia preten<strong>de</strong>.<br />
118