digital - Comunidade Virtual de Antropologia
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Oscar Calavia Sáez<br />
celebração agônica, como uma tourada ou uma luta <strong>de</strong> boxe. É isso<br />
uma <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>nsa?<br />
Creio que vale a pena ensaiar outras variações sobre o conceito <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>nsa. Voltemos ao início, à <strong>de</strong>scrição comum. A <strong>de</strong>scrição<br />
comum <strong>de</strong>ve primar pela sua economia: ou seja, <strong>de</strong>ve aproveitar ao<br />
máximo os elementos já familiares para abreviar o passo, e tornar-se<br />
mais <strong>de</strong>talhada apenas quando aparece um elemento estranho.<br />
Um locutor esportivo, por exemplo, faz suas <strong>de</strong>scrições para uma<br />
platéia que sabe bem <strong>de</strong> quê ele está falando, e obviamente não se<br />
<strong>de</strong>terá a explicar que a bola é redonda, que os jogadores usam roupas<br />
distintivas, que se concentram a um lado e outro do campo, etc. É claro<br />
que, se em lugar do gramado houvesse um campo <strong>de</strong> pedras ou <strong>de</strong><br />
poças, ou se aparecesse uma bola ortogonal, ou se os dois times<br />
saíssem vestidos com as mesmas cores, ou cada jogador com uma cor<br />
diferente, o locutor se <strong>de</strong>teria. Mostraria seu espanto e seu escândalo, e<br />
se, vai saber por quê, o jogo continuasse mesmo nessas condições (mas<br />
este jogo é muito estranho mesmo!) ele ficaria a falar das<br />
conseqüências que todas essas extravagâncias vão ter para a partida. A<br />
<strong>de</strong>scrição se a<strong>de</strong>nsa então, selecionando um maior numero <strong>de</strong> termos e<br />
especificando suas relações, precisamente porque é necessário dar<br />
conta <strong>de</strong> algo não previsto.<br />
A <strong>de</strong>scrição etnográfica (ou a <strong>de</strong>scrição científica em geral) parte do<br />
pressuposto <strong>de</strong> que a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>scrita contem elementos ou relações<br />
imprevistos. Mesmo se estamos a <strong>de</strong>screver algo muito familiar para o<br />
leitor, a razão <strong>de</strong> ser da etnografia está na suspeita <strong>de</strong> que há aspectos<br />
relevantes <strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong> que ficam invisíveis nas <strong>de</strong>scrições comuns,<br />
e o modo <strong>de</strong> faze-las explícitas é optar por uma <strong>de</strong>scrição diferente. A<br />
etnografia se baseia nesse tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição que se impõe quando o<br />
objeto <strong>de</strong>scrito é <strong>de</strong>sconhecido: tornar exótico o familiar é aplicar-lhe o<br />
mesmo tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição que se usa para o exótico.<br />
A situação etnográfica clássica –aquela em que <strong>de</strong>ve se dar conta <strong>de</strong><br />
uma realida<strong>de</strong> não apenas <strong>de</strong>sconhecida para o leitor, mas<br />
eventualmente contrária às suas expectativas- é um chamado para a<br />
<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>nsa. A presença <strong>de</strong> elementos estranhos exige um esforço<br />
<strong>de</strong>scritivo muito maior. Pensemos, por exemplo, num estojo peniano:<br />
para os etnólogos especializados nas Terras Baixas sulamericanas ou<br />
nas Terras Altas da Nova Guiné, ele é um termo familiar que não<br />
precisa <strong>de</strong> muita explicação. Mas uma <strong>de</strong>scrição etnográfica (<strong>de</strong>nsa) do<br />
estojo peniano será necessariamente algo complexo: será necessário<br />
explicar o material <strong>de</strong> que é feito, seu tamanho, seu modo <strong>de</strong> uso, os<br />
enfeites que eventualmente inclua; se dirá que, grosso modo, é uma<br />
vestimenta, mas certamente não uma vestimenta no sentido das<br />
vestimentas oci<strong>de</strong>ntais; cobre apenas o pênis, mas não o cobre<br />
dissimulando-o como acontece com a roupa, mas fazendo-o ficar em<br />
evidência. Apesar disso, será necessário explicar, o estojo peniano é,<br />
sim, uma vestimenta, que equivale às nossas roupas em vários<br />
sentidos: se apresentar em público sem ele é extremamente in<strong>de</strong>cente,<br />
e envergonharia gravemente a quem o fizesse. Os meninos <strong>de</strong>vem usa-<br />
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