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digital - Comunidade Virtual de Antropologia

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Esse obscuro objeto da pesquisa<br />

um equívoco <strong>de</strong> partida: talvez a tese <strong>de</strong>veria começar mesmo pelo que<br />

insistimos em chamar capitulo III.<br />

Escrever uma tese em antropologia não é preencher um esquema<br />

pre<strong>de</strong>terminado, mas criar um fio <strong>de</strong>scritivo e argumentativo cujo<br />

início se <strong>de</strong>scobre precisamente no momento da etnografia, na<br />

transposição ao papel da experiência <strong>de</strong> campo. Na maior parte das<br />

aca<strong>de</strong>mias, não há atualmente uma insistência visível no padrão<br />

monográfico. Isto é, não se espera que o autor <strong>de</strong> conta <strong>de</strong> uma minuta<br />

<strong>de</strong> temas indo da situação geográfica à ecologia e à economia, à<br />

organização social, à política, à religião e assim por diante (mutatis<br />

mutandis estou falando <strong>de</strong> qualquer tema: o padrão monográfico po<strong>de</strong><br />

se impor igualmente a um estudo <strong>de</strong> violência urbana ou <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s<br />

sociais na internet). Portanto, é perfeitamente possível provar uma<br />

outra or<strong>de</strong>m que comece por exemplo por um ritual, ou por um<br />

conflito, ou por uma crisi <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo, ou por um mito, e leve <strong>de</strong>pois,<br />

não necessariamente na or<strong>de</strong>m convencional, aos outros temas que<br />

vão se enlaçando a partir <strong>de</strong>sse núcleo inicial. Não há nenhuma<br />

seqüência que seja mais real ou mais verossímil que outra: páginas<br />

atrás dissemos que o relato <strong>de</strong>ve ter um princípio, um<br />

<strong>de</strong>senvolvimento e um final, mas isso não diz nada a respeito da<br />

matéria que <strong>de</strong>ve compor cada um <strong>de</strong>sses momentos. Se clássicos<br />

como Os Nuer <strong>de</strong> Evans-Pritchard, ou como os Argonautas <strong>de</strong><br />

Malinowski estão escritos numa or<strong>de</strong>m -o mo<strong>de</strong>lo monográfico antes<br />

aludido- que parece ter se consagrado como mais “natural”, basta ler<br />

Naven <strong>de</strong> Bateson ou A religião Nuer do mesmo Evans-Pritchard para<br />

perceber que or<strong>de</strong>ns muito diferentes <strong>de</strong>ssa tem um estatuto<br />

igualmente clássico. A or<strong>de</strong>m do nosso relato <strong>de</strong>ve ser a or<strong>de</strong>m do<br />

nosso argumento; é importante ser consciente <strong>de</strong> que é a partir do<br />

nosso argumento que po<strong>de</strong>mos fazer um relato claro, e evitar que uma<br />

or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> exposição convencional crie problemas a essa clarida<strong>de</strong>.<br />

Ou seja, a seqüência da nossa exposição <strong>de</strong>ve ser, <strong>de</strong> preferência, a<br />

do nosso argumento. Se essa organização do texto acaba <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong><br />

fora alguns itens que no entanto resultam imprescindíveis para que o<br />

leitor acompanhe (por exemplo, informes sobre situação, língua, etc.)<br />

nada impe<strong>de</strong> que eles sejam escritas a qualquer momento, e<br />

recolocados no seu <strong>de</strong>vido lugar. O texto não precisa ser escrito na<br />

or<strong>de</strong>m em que será editado, mas é muito útil que o seja –mesmo<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> alguns rascunhos tentativos- na or<strong>de</strong>m em que o relato faz<br />

sentido para o seu autor; <strong>de</strong>ve ser, <strong>de</strong>pois, editado <strong>de</strong> modo que faça<br />

também sentido para o leitor, facilitando a ele, a cada momento, as<br />

informações necessárias para continuar. Não na or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> qualquer<br />

sumario pré-estabelecido.<br />

A pergunta “Por on<strong>de</strong> começar?” procura não por um inicio<br />

convencional ou por uma premissa lógica, mas por aquela entrada que<br />

dê acesso ao percurso mais completo, aquele <strong>de</strong>s<strong>de</strong> on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> se traçar<br />

a linha mais longa a unir os pontos da nossa <strong>de</strong>scrição. Em geral, todo<br />

etnógrafo sabe qual é esse núcleo: foi o assunto que apareceu uma e<br />

outra vez na pesquisa, ao qual se remeteram teimosamente as nossas<br />

observações e os nossos diálogos <strong>de</strong> campo: po<strong>de</strong> ser um evento<br />

singular –uma festa, um aci<strong>de</strong>nte, uma disputa-, po<strong>de</strong> ser a insistência<br />

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