digital - Comunidade Virtual de Antropologia
digital - Comunidade Virtual de Antropologia
digital - Comunidade Virtual de Antropologia
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Esse obscuro objeto da pesquisa<br />
grosseiros. O resultado foi que coger, por sua vez, passou a soar<br />
igualmente grosseiro e teve que ser evitado para outros usos, <strong>de</strong> modo<br />
que a ação muito banal <strong>de</strong> pegar um prato, os óculos ou uma flor tem<br />
que ser expressa mediante o verbo agarrar (que em si conota um modo<br />
<strong>de</strong>masiado veemente <strong>de</strong> pegar). Já em temos <strong>de</strong> correção política,<br />
temos presenciado o processo que levou <strong>de</strong> palavras como tolhido ou<br />
inválido a expressões cada vez mais longas como <strong>de</strong>ficiente físico,<br />
portador <strong>de</strong> <strong>de</strong>ficiência ou, mais recentemente, portador <strong>de</strong><br />
necessida<strong>de</strong>s especiais; cada uma <strong>de</strong>ssas versões acaba, antes ou <strong>de</strong>pois,<br />
carregando o estigma da anterior.<br />
A mesma insistência na linguagem que se encontra na obra <strong>de</strong><br />
filósofos como Wittgenstein –ou em antropólogos como Sapir e Whorftem<br />
inspirado em muitos movimentos críticos uma tendência a atuar<br />
sobre o léxico (e sobre a morfologia, como acontece no caso das<br />
convenções <strong>de</strong> gênero <strong>de</strong> algumas línguas) como modo <strong>de</strong><br />
transformar a realida<strong>de</strong>. Se a realida<strong>de</strong> está feita <strong>de</strong> linguagem, por<br />
quê não? Mas essa tendência corre o risco <strong>de</strong> atribuir aos termos um<br />
valor <strong>de</strong>cisivo que, <strong>de</strong> fato, se encontra nas relações globais entre eles.<br />
Como tudo mundo sabe, os esquimó (perdão, Inuit) possuem uma<br />
larga série <strong>de</strong> termos diferentes para <strong>de</strong>signar a neve: o valor <strong>de</strong>sses<br />
termos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, é claro, <strong>de</strong> que os Inuit são capazes <strong>de</strong> dizer muitas<br />
coisas sobre a neve. A insistência <strong>de</strong> algumas vozes feministas em que<br />
a mulher que presi<strong>de</strong> algo seja chamada presi<strong>de</strong>nta não se <strong>de</strong>ve a que<br />
presi<strong>de</strong>nte seja gramaticalmente masculino (não o é, como não o é<br />
presente, estudante ou amante) senão ao fato <strong>de</strong> que a existência <strong>de</strong><br />
uma mulher presi<strong>de</strong>nte tem sido raramente <strong>de</strong>scrita –a expressão<br />
presi<strong>de</strong>nta se reservava, muito antes do feminismo, à esposa do<br />
presi<strong>de</strong>nte- <strong>de</strong> modo que a marca morfológica vem compensar uma<br />
carência <strong>de</strong>scritiva; mas em geral as alterações morfológicas não<br />
compensam, a longo prazo, as carências <strong>de</strong>scritivas. Se não se consegue<br />
dar <strong>de</strong>staque à <strong>de</strong>scrição da eficiência dos pretensos <strong>de</strong>ficientes, a<br />
<strong>de</strong>ficiência continuará a ser um estigma mesmo que mu<strong>de</strong> <strong>de</strong> nome. O<br />
público é livre <strong>de</strong> chamar as coisas, ou <strong>de</strong> exigir que as coisas sejam<br />
chamadas, como bem quiser; mas os pesquisadores <strong>de</strong>veriam ser<br />
conscientes <strong>de</strong> que o teor transformador do seu trabalho não está dado<br />
pelos termos que usa, mas pelo conjunto das <strong>de</strong>scrições que é capaz <strong>de</strong><br />
realizar com eles.<br />
79