digital - Comunidade Virtual de Antropologia
digital - Comunidade Virtual de Antropologia
digital - Comunidade Virtual de Antropologia
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Oscar Calavia Sáez<br />
transformação ou acréscimo a partir do que foi previamente criado.<br />
Em último termo, como o saber po<strong>de</strong>ria gerar uma proprieda<strong>de</strong><br />
intelectual individual se ele mesmo, o saber, é gerado <strong>de</strong> um modo<br />
relacional? A quem pertence um relato mítico? A quem o recolhe, a<br />
quem o narrou, a quem o ensinou ao narrador, a quem o ensinou a ele<br />
por sua vez, a quem narrou algum mito diferente do qual surgiu este<br />
por alteração? E uma fotografia? A quem clica? A quem é captado pelo<br />
objetivo? A quem conserva o negativo?<br />
Voltarei mais tar<strong>de</strong>, e com diversos motivos, a esta questão da<br />
proprieda<strong>de</strong> intelectual. Mas por enquanto é preciso dizer que ela não é<br />
jamais uma questão simples, um requisito ético que <strong>de</strong>ve se observar.<br />
Todo o universo da pesquisa antropológica está <strong>de</strong> um modo u outro<br />
permeado por essa questão, a qual <strong>de</strong>ve se manter em foco mesmo<br />
quando –o que está longe <strong>de</strong> acontecer- ela vem a ser regulada por leis<br />
que <strong>de</strong>vem se cumprir ou se contestar como quaisquer outras.<br />
Pessoalmente <strong>de</strong>vo advertir que sou muito reticente perante o<br />
entusiasmo com que às vezes se encara o tema da proprieda<strong>de</strong><br />
intelectual –dos acadêmicos ou dos nativos- como se fosse uma<br />
reivindicação indiscutível que apenas é preciso realizar com rigor. Na<br />
minha opinião, esse entusiasmo nada numa corrente <strong>de</strong> privatização<br />
do universo sobre a qual a antropologia teria muito que dizer.<br />
Mas por enquanto <strong>de</strong>vo indicar que, perante essas dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>finição que a ninguém escapam, a proprieda<strong>de</strong> intelectual tem<br />
tomado com freqüência a forma <strong>de</strong> uma autoria por exclusão, uma<br />
autoria diacrítica. Isto é, para dar um exemplo caricatural mas não<br />
improvável: o busto <strong>de</strong> Nefertiti é obra <strong>de</strong> um autor falecido milênios<br />
atrás, e por tanto pouco suscetível <strong>de</strong> reivindicar direitos individuais –<br />
embora possam quiçá tenta-lo o governo egípcio ou o museu alemão<br />
on<strong>de</strong> o busto foi parar <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma transação muito duvidosa. Mas se<br />
eu impingir sobre uma reprodução <strong>de</strong>le o bigo<strong>de</strong> <strong>de</strong> Groucho Marx,<br />
essa vileza me capacita para reivindicar a autoria da minha Nefertiti<br />
com bigo<strong>de</strong>, e para exigir que ninguém a reproduza sem me dar o<br />
<strong>de</strong>vido crédito, ou até retribuição. Parece um pouco absurdo, mas tem<br />
sido feito com alguma freqüencia: basta uma certa habilida<strong>de</strong> jurídica<br />
para que <strong>de</strong> certo.<br />
Uma variante mais nobre <strong>de</strong>ssa autoria diferencial é, com certeza,<br />
parte necessária <strong>de</strong> uma tese. Como diz Umberto Eco, o autor <strong>de</strong> uma<br />
tese <strong>de</strong>ve ser a máxima autorida<strong>de</strong> na matéria que ele escolheu como<br />
tema, não importa quão circunscrito ou nimio seja seu objeto. Alias,<br />
via <strong>de</strong> regra, o será graças a essa nimieda<strong>de</strong>: é improvável que um<br />
pesquisador iniciante consiga se tornar na sua primeira tentativa uma<br />
autorida<strong>de</strong> máxima no estudo da feitiçaria ou dos sistemas <strong>de</strong> troca.<br />
Mas po<strong>de</strong> chega-lo a ser em assuntos muito restringidos: por exemplo,<br />
a feitiçaria ou os sistemas <strong>de</strong> troca numa al<strong>de</strong>ia particular. Nesse<br />
âmbito bem <strong>de</strong>finido, ele <strong>de</strong>ve saber todo o que outros sabem, e mais<br />
algo que outros não sabem. Deve saber o que os seus co-autores<br />
(nativos ou antropólogos) sabem, e além disso algo mais que ele fará<br />
constar em sua tese e que será sua contribuição pessoal. Se a seguir se<br />
94