digital - Comunidade Virtual de Antropologia
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Oscar Calavia Sáez<br />
<strong>de</strong>veria ter ou cultivar in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da sua profissão: a<br />
observação, a relação com os outros, a pergunta, a <strong>de</strong>scrição... Na<br />
verda<strong>de</strong>, todo mundo nasce pelo menos um pouco antropólogo.<br />
Por isso mesmo, e pensando nesses grupos <strong>de</strong> estudantes (com seus<br />
professores) o suficientemente dispostos como para empreen<strong>de</strong>r<br />
ensaios <strong>de</strong> campo, gostaria <strong>de</strong> propor um outro exercício, muito menos<br />
comum e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> potencial: o <strong>de</strong> virar nativo.<br />
Não me refiro àquela possibilida<strong>de</strong> que ameaça, segundo vozes um<br />
pouco fantasiosas, ao pesquisador em campo (o <strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar uma<br />
manhã, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um sono intranqüilo, nu, tatuado, e dotado <strong>de</strong> uma<br />
lógica completamente diferente da lógica oci<strong>de</strong>ntal), mas a essa outra<br />
muito mais simples e fatal que se realiza cada vez que uma pesquisa<br />
começa: virar nativo por estar sob o escrutínio <strong>de</strong> um pesquisador.<br />
O exercício é singelo e muito barato: organize-se o conjunto dos<br />
estudantes no que po<strong>de</strong>ria ser um circuito kula <strong>de</strong> pesquisa, isto é, A<br />
pesquisa a B que pesquisa a C e assim sucessivamente até chegar a Z,<br />
que por sua vez pesquisa a A. Isso é importante, porque a relação <strong>de</strong><br />
pesquisa, em campo, não é –a não ser subsidiariamente- recíproca. É<br />
importante, também, que o objeto <strong>de</strong> pesquisa seja <strong>de</strong>finido por cada<br />
um dos colegas-pesquisadores, a partir <strong>de</strong> contatos exploratórios com<br />
seu colega-nativo (e evi<strong>de</strong>ntemente negociado –não pactado- com ele),<br />
assim como o método a ser seguido, que po<strong>de</strong> ser escolhido <strong>de</strong> entre<br />
nossa não tão vasta panoplia: observação participante da vida ou do<br />
aspecto da vida do colega escolhido como tema <strong>de</strong> pesquisa,<br />
entrevistas, etc. Depen<strong>de</strong>ndo do interesse do pesquisador, e da<br />
negociação que estabeleça com seu nativo, a pesquisa po<strong>de</strong>ria tratar <strong>de</strong><br />
assuntos tão variados como a sua vida familiar, sua praxe religiosa ou<br />
sua mitologia pessoal. Se a experiência é levada até o final, po<strong>de</strong> ser<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> interesse que a etnografia seja, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> escrita, julgada;<br />
<strong>de</strong>ssa vez, invertendo, também como no kula, o circuito: Z critica o<br />
trabalho <strong>de</strong> Y, que critica o <strong>de</strong> W, assim até que A critique o trabalho<br />
<strong>de</strong> Z.<br />
A quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> problemas e alterações da convivência que esse<br />
exercício po<strong>de</strong> causar é muito consi<strong>de</strong>rável, e por isso não é tão fácil<br />
que alguém a empreenda ou a execute até suas últimas conseqüências.<br />
Mas por isso mesmo po<strong>de</strong> ser muito valiosa porque po<strong>de</strong> dar uma idéia<br />
imediata do tipo <strong>de</strong> alterações que uma pesquisa em geral causa. E<br />
fundamentalmente po<strong>de</strong> dar a cada futuro pesquisador uma percepção<br />
imediata daquela posição que ele <strong>de</strong>ve compreen<strong>de</strong>r em campo, a do<br />
nativo.<br />
Se o parceiro-pesquisador faz seu trabalho como <strong>de</strong>ve, ele saberá o<br />
quê é confrontar a curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outro, alimentá-la ou eludi-la; saberá<br />
o quê é exatamente “inventar dados” na medida em que <strong>de</strong>va dar<br />
informações a respeito do que para ele é simplesmente obvio; saberá<br />
das fronteiras escorregadias entre a sincerida<strong>de</strong>, a fantasia, a ocultação<br />
e o engano perante a pesquisa. A sensibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>masiado expeditivas<br />
ou <strong>de</strong>masiado escrupulosas, a experiência po<strong>de</strong> dar uma noção realista<br />
dos prazeres e as agruras <strong>de</strong> virar alvo <strong>de</strong> uma pesquisa.<br />
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