digital - Comunidade Virtual de Antropologia
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Esse obscuro objeto da pesquisa<br />
Lugar <strong>de</strong> tese é na prateleira<br />
São comuns as lamentações sobre teses que vão se acumular nas<br />
prateleiras sem ter outros efeitos mais visíveis sobre a realida<strong>de</strong>. Essas<br />
lamentações são em geral enunciadas por pessoas <strong>de</strong> bem que, no<br />
entanto, talvez <strong>de</strong>veriam se <strong>de</strong>dicar a outro gênero <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
resultados mais imediatos. Salvo raríssimas exceções, um enfermeiro<br />
ou um bombeiro, ou, para falar <strong>de</strong> letrados, um jornalista ou um<br />
publicitário, obtém resultados muito mais imediatos que o mais sagaz<br />
dos autores <strong>de</strong> teses. Se é a realida<strong>de</strong> o que nos interessa, é bom<br />
começar reconhecendo essa.<br />
Às vezes, também, essas lamentações se <strong>de</strong>vem a pessoas<br />
bombásticas que enten<strong>de</strong>m que os seus produtos <strong>de</strong>veriam ser<br />
publicados, distribuídos e lidos por todo mundo. Imprimir uma tese<br />
significa em geral –no mo<strong>de</strong>lo atual <strong>de</strong> fácil financiamento-, a sua<br />
transferência das prateleiras das bibliotecas para as das livrarias <strong>de</strong><br />
ponta <strong>de</strong> estoque: por razões fáceis <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r, nenhuma editora se<br />
preocupa muito em difundir livros que já foram pagos por alguma<br />
instituição. Uma das poucas vantagens inequívocas das tecnologias<br />
digitais é que garantem uma alta disponibilida<strong>de</strong> com um mínimo <strong>de</strong><br />
gastos para o planeta. Essa possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>veria ser levada a sério<br />
pelas agências financiadoras, coibindo a <strong>de</strong>smedida tendência a<br />
imprimir teses –um sinal <strong>de</strong> prestígio <strong>de</strong>svalorizado pela inflação<br />
editorial, e que contribui a aumentar a realida<strong>de</strong> malcheirosa das<br />
fábricas <strong>de</strong> celulose. Mas em qualquer caso, isso só conduziria as teses<br />
para uma outra prateleira, virtual e mais leve.<br />
Uma tese na prateleira não é inútil. Se a escrita merece o título <strong>de</strong><br />
invenção mais radical da humanida<strong>de</strong> é precisamente porque permite<br />
encher as prateleiras <strong>de</strong> informações -inúteis até prova em contrário- e<br />
conservá-las até que eventualmente se produza o milagre da sua<br />
utilida<strong>de</strong>.<br />
É pouco provável que uma tese individual suponha mudanças<br />
substantivas mesmo num campo científico muito restrito. Essas<br />
mudanças substantivas se produzem sempre <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> longos tempos<br />
<strong>de</strong> lenta acumulação. Habitualmente as teses são lidas por outros<br />
especialistas da mesma área, que sabem procurá-las nas prateleiras.<br />
Um bom dia, um autor oportuno ou oportunista consegue encontrar o<br />
caminho que conduz <strong>de</strong>sse saber acumulado a algum tipo <strong>de</strong> aplicação.<br />
Não o teria feito sem a ajuda das prateleiras. A ciência é um excesso,<br />
um magnífico <strong>de</strong>sperdiço não sem algum parentesco com os potlachts<br />
dos índios do noroeste norteamericano. De um modo nem tão<br />
misterioso, porém, as socieda<strong>de</strong>s que <strong>de</strong>sperdiçam <strong>de</strong>sse modo tem<br />
alcançado um po<strong>de</strong>r notável nestes últimos séculos. Bem ou mal<br />
usado, isso é outra questão. A questão aqui é que a prateleira não é<br />
uma lixeira.<br />
A <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> “retorno prático” da pesquisa tem se feito cada vez<br />
mais comum, até se tornar um requisito oficial <strong>de</strong> qualquer projeto, <strong>de</strong><br />
modo que os formulários que o pesquisador <strong>de</strong>ve preencher incluem<br />
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