digital - Comunidade Virtual de Antropologia
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Oscar Calavia Sáez<br />
Muito tem se falado, por exemplo, sobre a autorida<strong>de</strong> etnográfica. O<br />
campo confere aquela qualificação que nos permite dizer “eu estive lá”<br />
e usar essa arma discursiva contra os que lá não estiveram:<br />
“O pai encarna a figura da autorida<strong>de</strong>”<br />
“Não, senhor. Eu estive nas Ilhas Trobriand e lá o pai é<br />
uma figura simpática e informal”<br />
“Não po<strong>de</strong> ser; a autorida<strong>de</strong> paterna é uma constante<br />
universal”<br />
“O senhor po<strong>de</strong> ter estado no universo, mas nunca esteve<br />
nas ilhas Trobriand”.<br />
Talvez já tenha se escrito o bastante contra essa pretensão, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
diversos ângulos. Basta um pouco <strong>de</strong> experiência etnográfica para<br />
saber da <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> do observador em campo, suas limitações, seu<br />
cansaço e suas distrações: parece excessivo atribuir tanta autorida<strong>de</strong> a<br />
um personagem tão precário. A autorida<strong>de</strong> do campo se encontra já<br />
dividida com outros agentes, que po<strong>de</strong>m entrar igualmente na<br />
discussão e que, frente ao “eu estive lá” po<strong>de</strong>riam opor um “eu nasci<br />
lá” ou “eu vivi lá a minha vida toda”. A autorida<strong>de</strong> tem sérias<br />
limitações espaciais e temporais: o antropólogo esteve lá, naquele<br />
lugar tão concreto, durante um período limitado; na medida em que<br />
pretenda ampliar suas proposições <strong>de</strong>verá confirma-las com outro tipo<br />
<strong>de</strong> dados (os do arquivo e a biblioteca), e estará abrindo mão <strong>de</strong> sua<br />
única vantagem.<br />
Mas mesmo que reduzamos a seus <strong>de</strong>vidos limites a autorida<strong>de</strong><br />
etnográfica, subsiste quase incólume a autoria etnográfica. Como<br />
outros empirismos mais antigos, o empirismo do fieldwork tem o<br />
mérito <strong>de</strong> acrescentar varieda<strong>de</strong> a um quadro pré-estabelecido <strong>de</strong><br />
autorias ou <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s. O campo é um modo relativamente<br />
simples e acessível <strong>de</strong> dar ao pesquisador iniciante uma voz<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, capaz <strong>de</strong> interpelar as sumida<strong>de</strong>s da aca<strong>de</strong>mia. Sem<br />
dúvida é possível fazer antropologia <strong>de</strong> segunda mão, a partir dos<br />
trabalhos <strong>de</strong> outros, mas é inevitável que, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ste paradigma <strong>de</strong><br />
antropologia como etnografia, essa opção <strong>de</strong>ixe sempre algo a <strong>de</strong>sejar.<br />
A ilha remota<br />
Junto ao fetiche do sujeito que esteve lá, nasce e cresce um outro<br />
fetiche, o do campo clássico, na ilha distante ou na al<strong>de</strong>ia remota.<br />
Antes da expansão da industria turística, que agora põe ao alcance <strong>de</strong><br />
quase qualquer um as terras altas da Birmânia ou as ilhotas da<br />
Micronésia, poucas pessoas podiam dizer que estiveram lá, e a distancia<br />
incrementava a autorida<strong>de</strong> etnográfica. Naqueles lugares distantes –<br />
curiosa coincidência- se encontraria, concentrada, toda essa matéria<br />
que permitia especular sobre a humanida<strong>de</strong> em conjunto. Porque só lá<br />
conservavam-se os traços primitivos, ou porque só lá a simplicida<strong>de</strong><br />
dos fenômenos permitia percebe-los <strong>de</strong> um golpe <strong>de</strong> vista, ou porque<br />
lá, na falta <strong>de</strong> potencia <strong>de</strong>mográfica, encontramos uma diversida<strong>de</strong><br />
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