digital - Comunidade Virtual de Antropologia
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Esse obscuro objeto da pesquisa<br />
A <strong>de</strong>scrição (<strong>de</strong>nsa)<br />
O conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>nsa proce<strong>de</strong> do filósofo Gilbert Ryle. Ele<br />
dava o exemplo <strong>de</strong> um jogador <strong>de</strong> golfe, que anda daqui pra lá dando<br />
golpes à bola (e como isso po<strong>de</strong> ser tedioso para alguém que o<br />
contemple sem nenhuma noção do que é o golfe!). Uma <strong>de</strong>scrição<br />
“rala” (thin) simplesmente iria registrando que o jogador golpeia a<br />
bola, anda atrás da bola, golpeia a bola, procura a bola. Uma <strong>de</strong>scrição<br />
“<strong>de</strong>nsa” (thick) seria aquela em que, além dos movimentos e dos<br />
golpes, fosse apresentada também a intenção do jogador, seu juízo a<br />
respeito da posição da bola, sua estratégia para leva-la até o buraco. A<br />
<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>nsa traz os fatos junto com sua interpretação.<br />
A <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>nsa foi popularizada entre os antropólogos por<br />
Clifford Geertz, que utilizou uma outra parábola apresentada por Ryle,<br />
a das pisca<strong>de</strong>las, e fez <strong>de</strong>stas pisca<strong>de</strong>las o pivô do programa<br />
interpretativista. A <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>nsa ocuparia aquele foco da pesquisa<br />
que a antropologia positivista queria reservar para a fórmula ou o<br />
teorema.<br />
A rigor, a proposta <strong>de</strong> Geertz não era assim to nova, pois muitos<br />
antropólogos antes <strong>de</strong>le (talvez Evans-Pritchard o mais significativo)<br />
tinham feito uma antropologia centrada na <strong>de</strong>scrição e na<br />
interpretação. Mas Geertz encarava <strong>de</strong> modo mais explícito um<br />
preconceito muito comum então, ainda agora e provavelmente no<br />
futuro: o <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>scrição é uma simples <strong>de</strong>scrição:<br />
-Professor, já preparei a parte teórica da minha tese, o que falta<br />
agora é apenas <strong>de</strong>scritivo.<br />
Essa convicção é extremamente comum, e quase sempre<br />
insuperável. Uma <strong>de</strong>scrição que é apenas <strong>de</strong>scritiva não é, com certeza,<br />
uma <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>nsa. Provavelmente não é <strong>de</strong>scrição nenhuma.<br />
Para começar, lembremos o que foi dito anteriormente a respeito<br />
do lugar da teoria. O trabalho teórico <strong>de</strong> uma tese não po<strong>de</strong> ser, em<br />
nenhum caso, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da <strong>de</strong>scrição. Antes da <strong>de</strong>scrição há, sim,<br />
pressupostos teóricos, inspirações teóricas, teorias prévias. Mas a teoria<br />
<strong>de</strong> uma tese <strong>de</strong>ve encarnar na <strong>de</strong>scrição, <strong>de</strong>ve ser o produto <strong>de</strong>ssas<br />
transformações que a <strong>de</strong>scrição opera nos pressupostos teóricos.<br />
A <strong>de</strong>scrição –po<strong>de</strong> parecer trivial, não o é- <strong>de</strong>ve ser feita, ou seja<br />
escrita. Ela não está inserida nos dados; não está nas ca<strong>de</strong>rnetas <strong>de</strong><br />
campo. Uma <strong>de</strong>scrição não é uma enfiada <strong>de</strong> notas tomadas<br />
previamente. É uma tarefa muito complexa, <strong>de</strong> cuja complexida<strong>de</strong> só<br />
se toma consciência quando <strong>de</strong> fato se proce<strong>de</strong> a escreve-la: a<br />
facilida<strong>de</strong> do “apenas <strong>de</strong>scritivo” se evapora logo nesse momento.<br />
Por quê? Bom, a <strong>de</strong>scrição é um texto, e portanto um discurso<br />
linear, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>vem ser or<strong>de</strong>nados dados que em si não são lineares.<br />
Uma figura humana po<strong>de</strong> ser apreendida <strong>de</strong> um golpe <strong>de</strong> vista, que<br />
nos revelará instantaneamente muitas coisas sobre essa figura. Mas<br />
não há nenhum artefato verbal que possa equivaler a um golpe <strong>de</strong><br />
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