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digital - Comunidade Virtual de Antropologia

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Oscar Calavia Sáez<br />

Do secreto ao eufemismo<br />

É difícil pensar situações em que o hermetismo tenha um valor em<br />

si. A rigor, é difícil falar <strong>de</strong>las. Como qualquer grupo humano, os<br />

cientistas não po<strong>de</strong>riam agir sem secretos ou sem reservas, e, por<br />

muito que a transparência tenha se tornado um valor ético, será difícil<br />

que ela não crie por sua vez problemas <strong>de</strong> tipo ético. Em outras<br />

palavras, é perfeitamente compreensível que, mediante o uso <strong>de</strong> uma<br />

linguagem relativamente hermética, se regule o aceso a uma<br />

informação cuja tradução imediata a termos mais populares se<br />

prestaria a péssimos usos.<br />

Para dar um exemplo que muitas vezes da farto trabalho aos<br />

colegas, não é difícil imaginar o que algo assim como a revista Veja<br />

po<strong>de</strong> fazer com o texto <strong>de</strong> um etnógrafo on<strong>de</strong> se afirme que o sessenta<br />

por cento dos membros do grupo indígena X tem os cabelos cacheados<br />

ou são loiros. É compreensível que o etnógrafo diga, em lugar disso,<br />

algo assim como: “a pertença ao grupo não é calculada a partir <strong>de</strong><br />

critérios fenotípicos ou <strong>de</strong> ascendência, mas em função <strong>de</strong> fatores<br />

puramente sociais”. O repórter <strong>de</strong> plantão não po<strong>de</strong>rá citar esse texto<br />

transformando-o numa manchete sensacional, pelas mesmas razões<br />

que impediriam que ele se <strong>de</strong>sse ao trabalho <strong>de</strong> registrar na sua<br />

matéria o argumento completo do etnógrafo: tem pressa. Po<strong>de</strong> haver<br />

outros exemplos menos óbvios, mas é claro que esse nível <strong>de</strong> redação<br />

especializada não está em absoluto fechado à linguagem comum. Se<br />

usei o tempo todo a expressão “linguagem comum” e não “linguagem<br />

ordinária” que seria a tradução mais imediata do termo que usa Ryle,<br />

não é apenas pela conotação pejorativa que essa última sugeriria em<br />

português, mas sobretudo porque ordinário remete apenas à noção <strong>de</strong><br />

uma or<strong>de</strong>m habitual, enquanto comum po<strong>de</strong> remeter à <strong>de</strong> troca e<br />

comunicação. Que o trabalho do cientista se dirija ao público não<br />

significa que ele, como qualquer ser comunicante, não possa escolher<br />

condições para essa comunicação.<br />

Mas po<strong>de</strong> ser que o afastamento da linguagem comum aconteça<br />

por outras razões, a saber, por uma recusa dos valores envolvidos na<br />

linguagem comum. O uso <strong>de</strong> um termo carregado <strong>de</strong> valores<br />

<strong>de</strong>testáveis equivaleria a referendar –com o prestígio da ciência-, esses<br />

valores. Mas esse escrúpulo <strong>de</strong>ve ser usado com cuidado. É claro que se<br />

espera que a ciência se expresse numa linguagem polida, mas isso não<br />

equivale a que a ciência se torne uma produtora <strong>de</strong> eufemismos.<br />

Um eufemismo é um termo alternativo que não consegue (ou que<br />

nem preten<strong>de</strong>) modificar o quadro semântico <strong>de</strong> que passa a fazer<br />

parte. O seu <strong>de</strong>stino mais comum é o <strong>de</strong> virar um sinônimo dos termos<br />

que tentou substituir, e continuar sendo traduzido por eles, com um<br />

certo acréscimo <strong>de</strong> malignida<strong>de</strong>. Muito antes da preocupação com a<br />

correção política, os eufemismos grassavam, por exemplo, na<br />

linguagem sexual. Um bom exemplo é, por exemplo, o verbo coger<br />

(pegar) que no espanhol <strong>de</strong> alguns paises americanos foi colocado no<br />

lugar <strong>de</strong> outros verbos que <strong>de</strong>signavam o ato sexual, e que soavam<br />

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