22.06.2015 Views

digital - Comunidade Virtual de Antropologia

digital - Comunidade Virtual de Antropologia

digital - Comunidade Virtual de Antropologia

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Oscar Calavia Sáez<br />

egiptologista interpreta hieroglíficos, um pianista interpreta uma<br />

partitura e um ator interpreta um papel: todo isso são interpretações, e<br />

o ponto que aquí interessa é em que medida ellas suplantam outras<br />

interpretações e as anulam, ou são capazes <strong>de</strong> se articular com ellas<br />

num mesmo plano.<br />

Este manual está escrito com a convicção <strong>de</strong> que manter as diversas<br />

interpretações num mesmo plano é mais interessante, e <strong>de</strong> que<br />

substituir os outros relatos pela nossa interpretação, se sobrepor a eles,<br />

é sempre sobre-interpretar.<br />

Habitualmente, a sobre-interpretação é uma suspeita que se dirige a<br />

teorias “po<strong>de</strong>rosas”, isto é, a teorias que propiciam interpretações que<br />

se parecem muito pouco ao interpretado. É o caso do Dr. Freud, é o<br />

caso do Dr. Lévi-Strauss. Não é o caso do Dr. Malinowski, por exemplo:<br />

em seus trabalhos ele apenas empurra um pouco além aquelas<br />

intuições que já apareciam visivelmente nas falas ou nas práticas dos<br />

nativos. Assim, quando analisamos um ritual, dificilmente nos<br />

acusarão <strong>de</strong> sobre-interpretar se nos referimos ao seu papel <strong>de</strong> reforçar<br />

a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> coletiva, ou <strong>de</strong> estreitar laços entre os membros <strong>de</strong> uma<br />

socieda<strong>de</strong>; esses fatores costumam ser enunciados, quiçá com outras<br />

palavras, na fala dos nativos.<br />

Mas o que eu quero sugerir aquí é que a sobre-interpretação não se<br />

me<strong>de</strong> pela distancia entre o explícito e esse implícito que nosso<br />

instrumento teórico nos permite <strong>de</strong>sencavar, mas pela disposição a se<br />

sobrepor. Sobre-interpretação é, fundamentalmente, sobreposição. As<br />

interpretações suaves po<strong>de</strong>m ser sobre-interpretações, tanto quanto<br />

interpretações fortes.<br />

Vejamos um exemplo muito comum. Estou a tratar da organização<br />

social <strong>de</strong> um povo indígena, e no meio da minha análise recorro a um<br />

relato mítico que <strong>de</strong>screve a formação e diferenciação <strong>de</strong> linhagens no<br />

momento da criação do mundo. Não é muito esperar que haja uma<br />

conexão entre ambas coisas, como há uma conexão entre os padrões<br />

<strong>de</strong> gênero no oci<strong>de</strong>nte e o relato bíblico do Paraíso (Adão, Eva, a<br />

Serpente e tudo o mais). Ninguém vai me acusar por isso <strong>de</strong> estar<br />

sobre-interpretando, mas posso estar sobreinterpretando se eu não<br />

<strong>de</strong>ixar claro -ou se eu não tiver claro- que não sei se o velho relato<br />

mítico é ainda lembrado, se ele não foi substituído por outro <strong>de</strong> sentido<br />

muito diferente (os mitos também mudam!) e, em soma, se eu não<br />

colocar os meus dados lado a lado <strong>de</strong>ixando transparecer que a minha<br />

alusão ao mito <strong>de</strong> origem é uma contribuição minha, e não um<br />

componente necessário dos meus dados.<br />

Minha interpretação acrobática dos lobos empoleirados será, assim,<br />

nem mais nem menos excessiva que a minha interpretação i<strong>de</strong>ntitária<br />

<strong>de</strong> um ritual, se eu sobreponho ambas ao confuso material que estou<br />

oferecendo. Uma sobreinterpretação feita pelo senso comum é, aliás,<br />

pior que uma sobreinterpretação contra-intuitiva, porque adormece o<br />

senso crítico do leitor, em lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>sperta-lo <strong>de</strong> golpe como fazem as<br />

sobreinterpretações muito vigorosas.<br />

De resto, o receio da sobreinterpretação po<strong>de</strong> justificar outro<br />

problema diferente que é o da subinterpretação. Po<strong>de</strong>mos ser<br />

pru<strong>de</strong>ntes e evitar interpretações <strong>de</strong>masiado surpreen<strong>de</strong>ntes, po<strong>de</strong>mos<br />

188

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!