digital - Comunidade Virtual de Antropologia
digital - Comunidade Virtual de Antropologia
digital - Comunidade Virtual de Antropologia
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Oscar Calavia Sáez<br />
informático. Não é propor que os etnógrafos an<strong>de</strong>m contra a corrente.<br />
Mas um antropólogo <strong>de</strong>ve saber que a superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma técnica<br />
nunca é absoluta; técnicas ultrapassadas num sentido continuam tendo<br />
algum tipo <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong> específica em outro. As características da<br />
etnografia como ciência estão ligadas ao ca<strong>de</strong>rno, do mesmo modo que<br />
as características do romance estão ligadas à imprensa e as da epopéia<br />
ao recitado <strong>de</strong> memória sem ajuda da escrita: é claro que novas<br />
técnicas po<strong>de</strong>m induzir novos tipos <strong>de</strong> texto, mas não é seguro que<br />
esses textos sejam etnografias ou romances. Por muito que o uso <strong>de</strong><br />
microcomputadores portáteis tenha se generalizado, o laptop continua<br />
sendo um equipamento relativamente pesado e pomposo em muitas<br />
ocasiões, exigindo condições <strong>de</strong> uso que não se cumprem em todo e<br />
qualquer lugar, e interferindo na interação com o nativo muito mais<br />
que um gravador, ou até uma câmera <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o. Em geral, é claro, o<br />
microcomputador serve muito mais no trabalho individual –na solidão<br />
relativa da casa ou da barraca- que no corpo-a-corpo da pesquisa. O<br />
proprietário <strong>de</strong>ssa engenhoca cara fica, <strong>de</strong> resto, mais preocupado com<br />
a chuva, os golpes e os roubos, e po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar para o seu instrumento<br />
uma atenção que <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>dicar ao seu campo.<br />
Afora esses inconvenientes <strong>de</strong> campo, as vantagens da escrita<br />
informática supõem também algumas <strong>de</strong>svantagens <strong>de</strong> gabinete. A<br />
busca facilitada pelos processadores <strong>de</strong> texto evita o trabalho prolixo,<br />
mas muito frutífero, <strong>de</strong> buscar um pouco a esmo entre as páginas;<br />
elu<strong>de</strong> um corpo a corpo com o próprio texto do qual surgem achados<br />
reveladores. Em geral, a escrita manual obriga a uma maior lentidão<br />
numa ativida<strong>de</strong> que ten<strong>de</strong> a se beneficiar da lentidão: uma boa<br />
etnografia rápida é quase uma contradição nos termos. A escrita<br />
informática é, <strong>de</strong> resto, reversível: permite, por exemplo, que<br />
pesquisadores muito ciosos da perfeição voltem atrás para corrigir<br />
dados anteriores que nesse momento lhe parecem errados. Isso é<br />
muito útil quando se trata <strong>de</strong> escrever a tese, não quando se trata <strong>de</strong><br />
anotar um percurso <strong>de</strong> pesquisa no qual os sucessivos erros <strong>de</strong> juízo ou<br />
<strong>de</strong> percepção po<strong>de</strong>m ser elementos importantes.<br />
Não se entenda todo isto como um argumento saudosista em favor<br />
do arcaísmo da caneta e o papel. Evi<strong>de</strong>ntemente o etnógrafo po<strong>de</strong>rá<br />
adaptar seu uso dos recursos informáticos <strong>de</strong> modo que preservem<br />
esse caráter histórico do diário: qualquer processador <strong>de</strong> texto dispõe<br />
<strong>de</strong> recursos para, por exemplo, i<strong>de</strong>ntificar as alterações <strong>de</strong> um texto<br />
original, guardar sucessivas versões <strong>de</strong> um mesmo texto, etc. Mas é<br />
fácil perceber que esse modo <strong>de</strong> uso dissolve logo a vantagem <strong>de</strong><br />
trabalhar com um computador...<br />
Há um momento introduzimos um atributo central do diário <strong>de</strong><br />
campo: sua temporalida<strong>de</strong>. Um diário não é um texto unitário e<br />
coerente, mas uma lista <strong>de</strong> escritos fragmentários or<strong>de</strong>nados apenas<br />
pela sucessão temporal. Por isso mesmo, o diário é o instrumento que<br />
permite tirar algum proveito <strong>de</strong> todo esse processo <strong>de</strong> estranhamento,<br />
familiarização etc. do qual fala com <strong>de</strong>leite a literatura. É no diário<br />
on<strong>de</strong> ficam consignadas as interpretações prematuras, on<strong>de</strong><br />
permanecem os equívocos, os nós, os impasses, as tentativas, as<br />
166