digital - Comunidade Virtual de Antropologia
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Oscar Calavia Sáez<br />
Para começar, ninguém está assim tão em casa na sua própria casa.<br />
Se você inventou <strong>de</strong> estudar antropologia e não qualquer outra coisa é<br />
provável que tenha alguma vocação mais velha para a dissidência ou<br />
para a marginalida<strong>de</strong>, aproveita-a. Afinal, toda essa conversa sobre<br />
estranhamento é, <strong>de</strong> algum modo, uma alegoria a respeito do<br />
<strong>de</strong>sapego que tem levado a tantos a procurar contra-espelhos em<br />
lugares distantes, e a imaginar-se como uma espécie <strong>de</strong> índio nascido<br />
no lugar errado. Armado das suas leituras etnográficas você po<strong>de</strong>rá se<br />
i<strong>de</strong>ntificar melhor com esse índio fora <strong>de</strong> contexto, e <strong>de</strong>screver o modo<br />
estranho <strong>de</strong> viver dos brancos, ou dos seus próprios parentes. Não é<br />
suficiente? Radicalize. Mergulhe na pesquisa conduzido pelo axioma<br />
<strong>de</strong> que <strong>de</strong> perto ninguém é normal. Enlouqueça temporariamente,<br />
jogue-se em braços da paranóia, dêe ouvidos aos loucos permanentes<br />
que sem dúvida há na sua família ou na sua ONG, examine suas<br />
teorias conspiratórias. Teste sistematicamente hipóteses<br />
contraintuitivas. Tente por todos os meios uma percepção alterada<br />
<strong>de</strong>sse universo tão conhecido, e confie: o mundo é mesmo estranho<br />
quando se olha pra ele com cuidado.<br />
E sobretudo não caia nessa armadilhas <strong>de</strong> pensar que, para bem<br />
enten<strong>de</strong>r um tema corrente em socieda<strong>de</strong>s complexas como a sua,<br />
<strong>de</strong>veria procurar ferramentas na sociologia, na economia ou na<br />
historia. Uma pesquisa antropológica nesses campos habitualmente<br />
reservados à sociologia, à historia ou à critica literária só se justifica se<br />
for uma pesquisa mais facciosamente antropológica (isto é, mais<br />
antisociologica, antihistorica ou antifilologica) que as que se realizam<br />
entre fetichistas <strong>de</strong> terras distantes. Caso lhe repugnem esses<br />
procedimentos, pense bem se não empreen<strong>de</strong>u a carreira errada.<br />
Virar nativo, nem que seja por umas horas<br />
Talvez seja necessário dizer algo também <strong>de</strong> outra retórica, <strong>de</strong>sta<br />
vez privada, que é em certo sentido a interiorização da autorida<strong>de</strong><br />
etnográfica: a percepção íntima <strong>de</strong> ter estado em campo, <strong>de</strong> ter<br />
mergulhado numa experiência irredutível. Essa percepção costuma dar<br />
ao pesquisador uma segurança inabalável, mesmo que essa seja uma<br />
experiência visceral da qual não tem muito o que dizer. Po<strong>de</strong> ser,<br />
chegada a esse ponto, uma armadilha. O campo não é uma viagem<br />
mistérica, é algo que <strong>de</strong>ve po<strong>de</strong>r ser dito em termos profanos. Caso<br />
contrário, é melhor calar. De fato, há um bom número <strong>de</strong> excelentes<br />
pesquisas em que o etnógrafo experimenta, pelo contrário, a sensação<br />
lamentável <strong>de</strong> que ele não está conseguindo penetrar no âmago <strong>de</strong>ssa<br />
vida outra. Nada <strong>de</strong> excepcional nisso: é saudável que o pesquisador<br />
lamente, alguma que outra vez, não ter nascido Massai ou Kamayurá, e<br />
esse sentimento lhe ajudara a <strong>de</strong>screver melhor a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa<br />
outra vida. Mas esse sentimento é exclusivo, evi<strong>de</strong>ntemente, <strong>de</strong> quem<br />
não nasceu Massai ou Kamayurá, um efeito da pesquisa que nunca<br />
leva a uma nova i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Como Roy Wagner já disse, a hipótese <strong>de</strong><br />
virar nativo po<strong>de</strong> ser comparada a historia daquele pintor chinês que,<br />
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