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digital - Comunidade Virtual de Antropologia

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Oscar Calavia Sáez<br />

A aureola<br />

No Paraguai do século XVIII, ainda afeto aos modos do velho<br />

regime, a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> una tese na universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Asunción era<br />

celebrada com um solene Te Deum, seguido <strong>de</strong> uma procissão que<br />

recorria a cida<strong>de</strong>. Faziam parte <strong>de</strong>la os clérigos, o reitor, o claustro<br />

acadêmico, o recém-doutor, uma banda <strong>de</strong> musica e os estudantes,<br />

fazendo, ao menos uma parte <strong>de</strong>les, o papel <strong>de</strong> bloco-<strong>de</strong>-sujos. Talvez<br />

não por acaso, essa <strong>de</strong>scrição está tirada da biografia <strong>de</strong> um doutor que<br />

<strong>de</strong>pois chegou a presi<strong>de</strong>nte-autócrata do seu pais e ficou conhecido<br />

como o Doutor Francia.<br />

As celebrações <strong>de</strong> uma tese são agora muito mais mo<strong>de</strong>stas, e o<br />

ceticismo post-mo<strong>de</strong>rno costuma dilui-las com comentários irônicos<br />

dirigidos ao novo doutor:<br />

“Te sentes diferente? Sabes mais agora?”<br />

Provavelmente ninguém acredite que, na conclusão da <strong>de</strong>fesa,<br />

algum tipo <strong>de</strong> aureola <strong>de</strong>sça sobre a cabeça do recém doutor. Mas esse<br />

ceticismo po<strong>de</strong> ser ingênuo. Afinal, quando escutamos, percebemos<br />

não só o que é dito, mas também quem o diz e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quê posição o diz.<br />

Um diploma, esse pedaço <strong>de</strong> papel inerte, tem alguns efeitos<br />

perfeitamente reais, além dos puramente burocráticos. Por exemplo, o<br />

<strong>de</strong> provocar respostas, que o mesmo autor, um dia antes, supostamente<br />

dono da mesma perspicácia, não provocava. Como dizia o poetafilósofo<br />

Antonio Machado:<br />

“A verda<strong>de</strong> é a verda<strong>de</strong>, diga-a Agamenon ou seu<br />

porqueiriço”<br />

Agamenon: De acordo.<br />

O porqueirico: Não me convence”<br />

Em outras palavras, a partir da <strong>de</strong>fesa da tese o autor tem uma<br />

relação diferente com o que escreve, que para começar se torna mais<br />

público, e obtém essa aureola doutoral que lhe confere legitimida<strong>de</strong> e<br />

po<strong>de</strong>r. Certo, há tantos doutores agora que a aureola não é mais o que<br />

foi em outros tempos, mas continua a ser aureola.<br />

É essa aureola o que o candidato a doutor está procurando <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que se torna candidato a doutor: não o saber em si, isento <strong>de</strong><br />

convenções e instituições –que como já dissemos não está recluído na<br />

universida<strong>de</strong>. Se consagrar em corpo e alma às convenções e à<br />

instituição, esquecendo <strong>de</strong> tudo o mais, é uma frau<strong>de</strong>; mas elaborar<br />

uma tese blasfemando a toda hora contra as convenções acadêmicas é<br />

inconseqüente e um pouco hipócrita. Fazer isso é muito mais comum<br />

entre doutorandos universitários que entre aspirantes a um time <strong>de</strong><br />

futebol ou à iniciação no candomblé -em geral muito mais convictos<br />

das convenções dos seus processos iniciatórios- é um tema sobre o qual<br />

vale a pena refletir.<br />

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