digital - Comunidade Virtual de Antropologia
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Esse obscuro objeto da pesquisa<br />
provavelmente con<strong>de</strong>nará ao autor a um futuro escasso em citações.<br />
Mas po<strong>de</strong> ser suficiente.<br />
Pelo contrário, o confinamento da teoria em páginas reservadas<br />
para esse fim não é suficiente; mais exatamente, é uma frau<strong>de</strong><br />
epistemológica. Mesmo que essa teoria apareça explicitada nos lugares<br />
reservados, ela –essa mesma teoria, e não outra- <strong>de</strong>ve estar também<br />
implícita no resto do trabalho. Se não o está, não é teoria, só<br />
ornamento retórico.<br />
E. E. Evans-Pritchard, que teve a honra <strong>de</strong> servir <strong>de</strong> alvo, <strong>de</strong>z anos<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> morto, às criticas pós-mo<strong>de</strong>rnas, é um excelente exemplo <strong>de</strong><br />
teoria implícita: não que ele <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> sintetizar uma que outra vez seus<br />
achados, mas em qualquer caso eles resi<strong>de</strong>m em permanência <strong>de</strong>ntro<br />
das suas <strong>de</strong>scrições, sem multiplicar os gran<strong>de</strong>s rótulos nem se fazer<br />
notar pela proliferação <strong>de</strong> neologismos. Com alguma freqüência,<br />
tenho notado que os estudantes não reagem aos seus textos, porque a<br />
falta <strong>de</strong> manchetes que perturbem uma <strong>de</strong>scrição transparente suscita<br />
uma certa impressão <strong>de</strong> obvieda<strong>de</strong> que só se <strong>de</strong>smente quando se toma<br />
o argumento no seu conjunto e se compara a outros.<br />
Apesar das aparências, não é necessariamente isso –a inserção da<br />
teoria na <strong>de</strong>scrição- o que acontece. Um traço muito comum da<br />
produção acadêmica é a proliferação <strong>de</strong> elaborações teóricas que<br />
antece<strong>de</strong>m e eventualmente seguem à <strong>de</strong>scrição dos “fatos” mas que<br />
pairam sem conseqüência sobre eles. Para dar um exemplo genérico, é<br />
fácil <strong>de</strong>dicar uma introdução a metralhar impiedosamente as noções<br />
obsoletas <strong>de</strong> cultura ou <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> para <strong>de</strong>pois produzir uma<br />
<strong>de</strong>scrição que usa sem pudor essas mesmas noções que acabam <strong>de</strong> ser<br />
atacadas, ou que as substitui por algum sinônimo. Ou clamar pela<br />
historicida<strong>de</strong> das socieda<strong>de</strong>s indígenas para <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>screve-las em<br />
termos perfeitamente esquemáticos e a-temporais.<br />
Esse <strong>de</strong>scompasso entre discurso teórico e <strong>de</strong>scrição é muito mais<br />
comum do que possa parecer, e muito freqüente nas teses –embora,<br />
curiosamente, não dê lugar à reprovação. Sua freqüência vem da<br />
convicção, muito comum entre os estudantes, <strong>de</strong> que a teoria é algo<br />
que se acrescenta à pesquisa, e que se mostra claramente neste tipo <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>clarações:<br />
-Professor, já tenho um objeto <strong>de</strong> pesquisa, mas me falta<br />
um recorte teórico.<br />
-Professor, já tenho pronta toda a minha <strong>de</strong>scrição<br />
etnográfica, mas me falta teoria.<br />
O recorte teórico faz parte da <strong>de</strong>finição do objeto, portanto é<br />
impossível acrescenta-lo a um objeto já <strong>de</strong>finido. A mesma coisa po<strong>de</strong><br />
se dizer <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>scrição. De modo que, nesses casos acima citados, o<br />
que está a acontecer é uma <strong>de</strong> duas possibilida<strong>de</strong>s. Primeira, o<br />
pesquisador já tem, <strong>de</strong> fato, um objeto ou uma <strong>de</strong>scrição, mas não é<br />
consciente do recorte teórico que utilizou; é um mal sinal. E po<strong>de</strong> ser<br />
que esteja a procura não <strong>de</strong> uma teoria, mas <strong>de</strong> um ornamento<br />
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