digital - Comunidade Virtual de Antropologia
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Oscar Calavia Sáez<br />
Já em casa, e <strong>de</strong>frontado ao meu material, releio todo e<br />
começo a fazer anotações. Posso comprovar que, como já<br />
intui no campo, esse labirinto que os nativos me fizeram<br />
percorrer <strong>de</strong> uma casa a outra tem lá sua lógica: em geral<br />
cada um me enviava aos seus parentes por afinida<strong>de</strong><br />
preten<strong>de</strong>ndo que eles teriam mais coisa que me dizer a<br />
respeito <strong>de</strong> xamanismo, e à posteriori toda aquela<br />
experiência se revela muito rica, se não a respeito do<br />
xamanismo como tal, sim a respeito das relações sociais na<br />
al<strong>de</strong>ia. Igualmente, as falas dos missionários dizem muito a<br />
respeito do campo religioso das missões, algumas leituras<br />
que faço no momento <strong>de</strong>ixam mais clara a sua riqueza.<br />
Enfim, a mitologia que foi sendo recolhida no final, que não<br />
era o meu objetivo, nem fala a rigor do que era meu objetivo,<br />
permite sim inferir relações interessantes entre o universo<br />
simbólico que ela <strong>de</strong>scortina e esse xamanismo que continua<br />
sem se <strong>de</strong>ixar ver. Os mitos recolhidos ou tomados do neófito<br />
se enchem <strong>de</strong> anotações nesse sentido.<br />
O meu orientador me avisa <strong>de</strong> que já é hora <strong>de</strong> escrever a<br />
tese. O que faço?<br />
É um exemplo como qualquer outro, mas talvez tenha o interesse<br />
<strong>de</strong> acrescentar à escrita uma dificulda<strong>de</strong> adicional –e muito comumque<br />
é a relativa frustração <strong>de</strong> nossas expectativas. O eventual autor<br />
<strong>de</strong>ssa tese tem diante <strong>de</strong> si três opções básicas, que po<strong>de</strong>rão ser até um<br />
certo ponto combinadas.<br />
1ª Como já foi dito, usar o próprio diário <strong>de</strong> campo, e o percurso da<br />
pesquisa que ele registrou, como roteiro da narração. Isto é, a primeira<br />
parte focará as minha tentativas com os Z, a segunda a minha incursão<br />
ao mundo dos missionários, a terceira o trabalho com o neófito e seus<br />
esforços <strong>de</strong> anotar e reinterpretar o mundo dos Z. É um roteiro<br />
perfeitamente viável, que está pronto já no meu diário e ao qual<br />
bastaria com acrescentar a pertinente introdução e alguma<br />
recapitulação ou conclusão final.<br />
2ª Usar como roteiro não o corpo do texto do diário <strong>de</strong> campo, mas<br />
as notas que nele fui inserindo quando da releitura, e que acabaram<br />
sendo para mim mais sugestivas que o meu percurso <strong>de</strong> pesquisador<br />
enquanto tal. No exemplo que acabamos <strong>de</strong> expor, isso daria uma<br />
primeira parte <strong>de</strong>dicada ao sistema <strong>de</strong> parentesco e às relações <strong>de</strong><br />
aliança dos Z; uma segunda <strong>de</strong>dicada à história da missão, e uma<br />
terceira <strong>de</strong>dicada à análise da mitologia dos Z. Os meus <strong>de</strong>svelos como<br />
pesquisador passam a um segundo plano, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>ixado como<br />
ponto positivo uma intuição forte das relações que há entre esses<br />
temas, e que me fizeram ir passando <strong>de</strong> uma a outra.<br />
3ª Por motivos <strong>de</strong> imposição acadêmica, ou por gosto pessoal,<br />
prefiro usar um roteiro semelhante ao das monografias mais clássicas<br />
sobre xamanismo. No meu caso, isso é mais difícil porque os dados que<br />
consegui não se a<strong>de</strong>quam a esse padrão. Por exemplo, não tenho nada<br />
que colocar nesse capítulo que sempre se reserva para a <strong>de</strong>scrição das<br />
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