digital - Comunidade Virtual de Antropologia
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Oscar Calavia Sáez<br />
vista: se quisermos <strong>de</strong>screver essa mesma figura <strong>de</strong>veremos, primeiro,<br />
escolher caraterísticas <strong>de</strong>la que contribuam a individualizá-la (ter dois<br />
braços não é uma boa caraterística; ter apenas um é uma excelente<br />
caraterística) e escolher também palavras que consigam traduzir<br />
nossas impressões visuais. Algumas serão fáceis, recorrendo a<br />
substantivos e adjetivos habitualmente usados nesse tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição<br />
(cabelo escuro, nariz adunco) mas outras nem tanto, e será necessário<br />
recorrer a símiles ou comparações.<br />
Será ainda necessário escolher a or<strong>de</strong>m em que essas caraterísticas<br />
serão expostas. Uma lista <strong>de</strong> traços isolados po<strong>de</strong> ser satisfatória para<br />
uma ficha policial (complexão atlética, cabelo escuro, nariz adunco,<br />
caveira tatuada no ombro esquerdo, falta <strong>de</strong>do mindinho do pé<br />
direito) mas não é uma boa <strong>de</strong>scrição. A <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>ve or<strong>de</strong>nar esses<br />
traços <strong>de</strong> um modo significativo, hierarquizar traços mais precisos e<br />
mais vagos, impressões gerais e particulares, e, em <strong>de</strong>finitiva pôr em<br />
relação todos os termos da <strong>de</strong>scrição.<br />
O exemplo da figura humana é válido até aqui. Mas doravante<br />
engana, na medida em que sugere que todo esse trabalho verbal <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>screver um corpo po<strong>de</strong>ria ser substituído com vantagem por uma<br />
foto. Mas um etnógrafo <strong>de</strong>screve habitualmente coisas que não po<strong>de</strong>m<br />
ser fotografadas. Ou que, embora possam ser fotografadas, não<br />
po<strong>de</strong>riam ser <strong>de</strong>scritas apenas fotograficamente. Pensemos num ritual,<br />
no funcionamento <strong>de</strong> um mercado ou <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> parentesco.<br />
Ao <strong>de</strong>screver qualquer uma <strong>de</strong>ssas realida<strong>de</strong>s, o nosso trabalho<br />
<strong>de</strong>verá seguir as mesmas linhas antes sugeridas: escolher pontos<br />
significativos nessa realida<strong>de</strong>, escolher termos apropriados, <strong>de</strong>finir<br />
uma or<strong>de</strong>m linear e também uma hierarquia <strong>de</strong> relevância <strong>de</strong>sses<br />
termos. E, muito importante, conseguir que o relato <strong>de</strong>sse conjunto<br />
seja claro. Estas instruções, evi<strong>de</strong>ntemente, não chegam a configurar<br />
um método para <strong>de</strong>screver, mas na verda<strong>de</strong> não há receita ou<br />
protocolo disponível para uma <strong>de</strong>scrição etnográfica, como há receitas<br />
ou protocolos para uma ficha policial, on<strong>de</strong> trata-se apenas <strong>de</strong><br />
preencher um formulário com aquelas caraterísticas que se estimam a<br />
priori mais relevantes. Descrever é, na verda<strong>de</strong>, uma habilida<strong>de</strong><br />
literária, que o pesquisador <strong>de</strong>veria adquirir através <strong>de</strong> uma<br />
familiarida<strong>de</strong> ampla com boas <strong>de</strong>scrições já feitas: a formação <strong>de</strong> um<br />
pesquisador não é apenas uma coleta <strong>de</strong> conceitos ou teorias, mas uma<br />
lenta apropriação <strong>de</strong> recursos <strong>de</strong>scritivos; se essa formação não é<br />
estreitamente acadêmica mas se expan<strong>de</strong> pelos terrenos literários,<br />
tanto melhor.<br />
Uma nota: neste ponto, <strong>de</strong>ixam-se sentir as conseqüências <strong>de</strong> uma<br />
formação antropológica alimentada <strong>de</strong> fragmentos (introduções,<br />
capítulos conclusivos, artigos <strong>de</strong> síntese teórica) e muito raramente <strong>de</strong><br />
etnografias completas. Esse hábito cria a miragem <strong>de</strong> que, <strong>de</strong> posse <strong>de</strong><br />
uma síntese teórica, a <strong>de</strong>scrição é apenas a tarefa menial <strong>de</strong> preencher<br />
com mais dados esse esquema suficiente. Mas boas teorias não<br />
significam nada sem boas <strong>de</strong>scrições, e a familiarida<strong>de</strong> com boas<br />
<strong>de</strong>scrições não po<strong>de</strong> ser substituída com nada no momento em que se<br />
preten<strong>de</strong> fazer mais uma.<br />
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