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digital - Comunidade Virtual de Antropologia

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Oscar Calavia Sáez<br />

A antropologia é literatura?<br />

A pergunta tem sido feita por pessoas que não estavam seguras <strong>de</strong><br />

que a antropologia fosse uma ciência. Mas mesmo que a antropologia<br />

seja uma ciência, a pergunta continua sendo relevante.<br />

Num primeiro sentido, essa i<strong>de</strong>ntificaçao é obvia: a antropologia<br />

escreve-se, logo é literatura. Escreve-se, aliás, por extenso e<br />

linearmente, não por meio <strong>de</strong> fórmulas, gráficos ou tabelas, que via <strong>de</strong><br />

regra servem não mais que como materiais <strong>de</strong> apoio ou ilustrações. O<br />

produto final da antropologia é literário (em algum momento<br />

trataremos brevemente da antropologia visual, que também é com<br />

freqüência muito literária). Mesmo quando é antropologia aplicada,<br />

ela se compõe <strong>de</strong> projetos, folhetos, relatórios, laudos. Esse tecido<br />

literário requer a ossatura <strong>de</strong> qualquer outro tecido literário: um<br />

vocabulário, tropos, esquemas narrativos, etc. Tudo isso é óbvio, e a<br />

primeira questão a ser respondida é se alguma coisa mais relevante<br />

sobre a relação entre antropologia e literatura <strong>de</strong>ve ser dita para além<br />

do óbvio, ou se é preciso se aprofundar nessa obvieda<strong>de</strong> para tirar todas<br />

as suas conseqüências. A resposta, no que a mim diz respeito é a<br />

segunda. A seguir, tentaremos tirar alguma <strong>de</strong>ssas conseqüências<br />

anunciadas.<br />

Mas para seguir é preciso, ainda, esclarecer se essa i<strong>de</strong>ntificação<br />

entre literatura e antropologia é feita pela mediação <strong>de</strong> um “apenas”. A<br />

antropologia é literatura ou é “apenas literatura”? É claro que não<br />

gostamos da sobranceria científica do positivismo, mas ela parece ter<br />

nos <strong>de</strong>ixado em herança a pitoresca suposição <strong>de</strong> que mudar da ciência<br />

para a literatura é <strong>de</strong>scer um <strong>de</strong>grau, ou quem sabe passar para um<br />

jardim ameno, um quintalzinho gostoso. O que afastaria os cientistas<br />

<strong>de</strong>ssa tentação seria uma espécie <strong>de</strong> pendor ascético: “se a minha<br />

serieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> cientista m’o permitisse, já teria escrito algum romance”.<br />

Mas isso não tem acontecido com freqüência, talvez porque fazer<br />

apenas literatura não é mais fácil que fazer antropologia.<br />

A crítica pós-mo<strong>de</strong>rna em geral tem recorrido também a esse<br />

“apenas”, quando tem criticado alguns clássicos da antropologia<br />

(Malinowski e Evans-Pritchard foram alvos privilegiados) assinalando<br />

os tropos e as referências literárias que neles podiam se <strong>de</strong>tectar.<br />

Descobrir que a antropologia é literatura parece ser, para alguns pósmo<strong>de</strong>rnos,<br />

como <strong>de</strong>svendar sua íntima mentira. É verda<strong>de</strong> que, nos<br />

seus manifestos, esses mesmos autores têm incentivado a<br />

experimentação <strong>de</strong> novas formas literárias, e em particular <strong>de</strong> novas<br />

formas <strong>de</strong> etnografia. Mas pelos resultados po<strong>de</strong>ríamos suspeitar que o<br />

que estava em pauta não era tanto renovar a literatura etnográfica,<br />

mas substituí-la por uma literatura <strong>de</strong> segundo grau, a saber pela<br />

crítica literária (infelizmente isso evoca aquela velha suspeita, às vezes<br />

injusta, <strong>de</strong> que um crítico literário po<strong>de</strong> ser um escritor malsucedido).<br />

Uma reflexão sobre as relações entre antropologia e literatura<br />

po<strong>de</strong>ria ser muito mais profícua longe <strong>de</strong>sse “apenas” (que é uma<br />

restrição, ou uma má consciência pós-positivista). Vamos tentar.<br />

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