digital - Comunidade Virtual de Antropologia
digital - Comunidade Virtual de Antropologia
digital - Comunidade Virtual de Antropologia
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Oscar Calavia Sáez<br />
segunda lei da termodinâmica e po<strong>de</strong> se fazer ciência sobre centauros e<br />
unicórnios.<br />
A segunda suposta diferença não está garantida em nenhum dos<br />
lados. Nada impe<strong>de</strong> que um método idêntico ao da antropologia seja<br />
utilizado na literatura; isso foi feito em numerosas ocasiões, até antes<br />
<strong>de</strong> que o método se formalizasse como etnográfico: observação<br />
participante, ca<strong>de</strong>rnos e diários <strong>de</strong> campo, etc. E, quanto à teoria,<br />
dificilmente será possível escrever literatura sem teoria, no sentido<br />
mínimo que daremos à teoria mais tar<strong>de</strong>. Mesmo em sentido menos<br />
mínimo, a teoria que po<strong>de</strong> se encontrar <strong>de</strong>ntro da literatura po<strong>de</strong> ser<br />
muito relevante em termos antropológicos. Isso já está expresso no<br />
contraste que Aristóteles esboçava entre história e poética: a verda<strong>de</strong><br />
da história –isto é, <strong>de</strong> um estudo do factualmente acontecido- é<br />
contingente em comparação com a verda<strong>de</strong> da poética, que trata da<br />
or<strong>de</strong>m geral das possibilida<strong>de</strong>s (estou parafraseando <strong>de</strong> modo livre).<br />
Há gêneros literários inteiros –tudo que foi chamado <strong>de</strong> literatura<br />
utópica ou distôpica- que trazem una reflexão teórica muito afim à da<br />
antropologia social, e tem mantido com ela um influxo recíproco. E há<br />
<strong>de</strong> se lembrar que boa parte da agenda teórica das ciências humanas –<br />
afinal, ciências <strong>de</strong> criação recente- proce<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma tradição literária<br />
muito mais antiga.<br />
Do lado da ciência, é bom lembrar que nem método nem teoria se<br />
adquirem automáticamente por trabalhar num edifício universitário.<br />
Isto é, qualquer cientista corre o perigo <strong>de</strong> usar não método ou teoria,<br />
mas apenas simulacros <strong>de</strong> ambos. Quando isso acontece, o resultado<br />
não é literatura; é só má literatura.<br />
Quando à terceira suposta diferença, ela é <strong>de</strong>masiado beletrista.<br />
Nem a literatura precisa usar uma linguagem ornamental, nem os<br />
recursos retóricos ou poéticos estão jamais ausentes no discurso da<br />
ciência. Não o estão sequer na física, e com certeza não o estão nas<br />
ciências humanas. A literatura po<strong>de</strong> se permitir um uso mais opaco,<br />
vago e conotativo da linguagem que qualquer ciência. Mas o que é<br />
verda<strong>de</strong>iramente revelador, quando se trata da linguagem, não é o que<br />
ela tem <strong>de</strong> diferente na literatura e na ciência, mas o que ela tem <strong>de</strong><br />
constante <strong>de</strong> uma à outra.<br />
Boa parte do trabalho do antropólogo consiste em or<strong>de</strong>nar<br />
experiências e reflexões <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um texto, sendo que a forma <strong>de</strong>sse<br />
texto não é indiferente ao resultado. E o resto <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong> se<br />
realiza entre outras pessoas que se comunicam com ele através <strong>de</strong> uma<br />
linguagem, ou observando uma realida<strong>de</strong> sobre a qual po<strong>de</strong>rá refletir<br />
com a ajuda <strong>de</strong> termos que estão na linguagem. Um físico ou um<br />
matemático <strong>de</strong>verão utilisar com freqüência a linguagem matemática,<br />
formal e separada da linguagem natural comum. Mas isso –apesar dos<br />
sonhos positivistas- não é dado às ciências humanas, que nunca<br />
po<strong>de</strong>rão transcen<strong>de</strong>r <strong>de</strong>finitivamente essa linguagem. Ela é seu veículo<br />
mas também sua matéria. E a elaboração teórica é um trabalho interno<br />
da linguagem, que <strong>de</strong>verá constantemente explorar os recursos da<br />
linguagem.<br />
34