digital - Comunidade Virtual de Antropologia
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Oscar Calavia Sáez<br />
numa linguagem comum altera essa linguagem comum, em lugar <strong>de</strong><br />
preservá-la ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> gírias especializadas (se isso acontece, a<br />
linguagem castiça vê-se reduzida ela mesma a mais uma gíria,<br />
especializada na expressão do senso comum).<br />
O bom português em que uma boa teoria <strong>de</strong>veria ser formulada é<br />
um bom português mutante, com eventuais traições ao espírito da<br />
língua e até à boa praxe gramatical. De fato, as línguas continuam<br />
vivas se alimentando <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> traições. É o que faz um bom<br />
número <strong>de</strong> especialistas do discurso, <strong>de</strong> poetas a publicitários: ampliar<br />
o espaço comum da linguagem. Os cientistas, com razões tão boas ou<br />
melhores, <strong>de</strong>vem fazer o mesmo, e a relevância do seu trabalho<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> disso.<br />
A questão da linguagem comum vêm <strong>de</strong> mãos dadas com uma<br />
outra, a do valor que o público tem para a ciência. Esse valor já teve<br />
seu momento <strong>de</strong> glória nas ciências naturais, numa época em que a<br />
experimentação em público adquiriu um valor <strong>de</strong> autenticação das<br />
teorias. Na época esse valor era posto em dúvida pelos acadêmicos,<br />
partidários <strong>de</strong> uma legitimação através das autorida<strong>de</strong>s. Os avanços<br />
fundamentais da química ou da física do século XVIII foram<br />
consagrados não na aca<strong>de</strong>mia, mas perante um público leigo, e as<br />
famosas reuniões em que se travou a batalha sobre as teorias <strong>de</strong><br />
Darwin eram também assembléias não especializadas. Sem dúvida, a<br />
crescente especialização das ciências –e sua <strong>de</strong>dicação a criar efeitos<br />
técnicos-, faz que seja cada vez mais difícil mostrá-la. O público da<br />
ciência é cada vez mais um público passivo perante o qual a ciência é<br />
<strong>de</strong>sdobrada como espetáculo, e não como argumento.<br />
Mas essa mesma especialização implica que a mesma dúvida que se<br />
aplica à linguagem comum, ou ao público comum, po<strong>de</strong> se aplicar ao<br />
público especializado, e à sua linguagem. Quem constituiria esse<br />
público especializado num momento em que a extraordinária<br />
especialização dos campos do saber implodiu a própria noção <strong>de</strong> um<br />
público “cultivado”? Os leigos se encontram logo aí, fora dos limites <strong>de</strong><br />
um projeto <strong>de</strong> pesquisa, ou <strong>de</strong> uma seita teórica, no <strong>de</strong>partamento ao<br />
lado ou no laboratório ao lado.<br />
A ativida<strong>de</strong> intelectual –seja a do saber popular, seja a da criação<br />
literária, seja a da pesquisa científica- nunca é in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da<br />
linguagem. Sem confundir necessariamente capacida<strong>de</strong> científica e<br />
habilida<strong>de</strong> literária, é preciso reconhecer que a idéia <strong>de</strong> um<br />
pensamento claro expresso <strong>de</strong> modo confuso é uma contradição nos<br />
termos.<br />
Em <strong>de</strong>terminadas ciências, o requisito da linguagem comum po<strong>de</strong><br />
parecer menos premente, porque seus produtos mais comuns são<br />
efeitos técnicos que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da comunicação entre os cientistas e<br />
um corpo técnico especializado, sem nunca se dirigir a um público<br />
final: é possível usar maravilhosamente um micro-ondas sem ter a<br />
mais mínima idéia <strong>de</strong> como essa engenhoca produz calor. Há nesse<br />
caso um hiato entre a ciência e sua divulgação. Mas no que diz respeito<br />
às ciências humanas –mal que pese aos que sonham com uma<br />
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