digital - Comunidade Virtual de Antropologia
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Esse obscuro objeto da pesquisa<br />
A diferença entre a antropologia e a literatura não oferece<br />
nenhuma dúvida se aceitarmos que a antropologia é uma ciência, e a<br />
literatura em geral não.<br />
É claro que me refiro apenas à acepção do termo “ciência” tal como<br />
ele foi antes esboçado. Aquele princípio da falseabilida<strong>de</strong> exige que o<br />
texto científico seja transparente, rastreável. Ao cientista <strong>de</strong>ve se pedir<br />
que exponha <strong>de</strong> on<strong>de</strong> e como tirou suas informações e suas<br />
conclusões; o literato até po<strong>de</strong>ria expor essas coisas, mas se o faz o fará<br />
gratuitamente –sua obra não terá maior valor literário por isso. O<br />
cientista é, por assim dizer, um intermediário entre sujeitos, que <strong>de</strong>ve<br />
manter a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses sujeitos: no que ele escreve, <strong>de</strong>ve i<strong>de</strong>ntificar<br />
não só os sujeitos da ação que ele <strong>de</strong>screve, mas também os sujeitos<br />
que inspiram sua própria organização e interpretação dos dados. Toda<br />
a aparelhagem <strong>de</strong> referências documentais ou bibliográficas que<br />
i<strong>de</strong>ntificam facilmente uma obra científica <strong>de</strong>riva <strong>de</strong>ssa necessida<strong>de</strong>. O<br />
literato, pelo contrario, é entendido como um criador, que, mesmo se<br />
informasse pontualmente <strong>de</strong> todas as fontes em que bebe, <strong>de</strong>verá<br />
sempre oferecer algo mais, irredutível a elas (e surgido,<br />
obrigatoriamente, <strong>de</strong> não se sabe on<strong>de</strong>: sua subjetivida<strong>de</strong>, as musas ou<br />
a magia do idioma). A opacida<strong>de</strong> que compromete o valor científico é,<br />
pelo contrário, exigível na criação literária, se ela quer ser criação<br />
literária.<br />
A diferença, portanto, é simples e clara. Alguém po<strong>de</strong>ria perguntar,<br />
até, para quê <strong>de</strong>finir uma diferença que se <strong>de</strong>ixa ver por si só nas<br />
prateleiras <strong>de</strong> qualquer livraria. Mas há um problema, e é que esse<br />
critério mínimo <strong>de</strong> diferença entre literatura e ciência tem se malentendido<br />
e mal-estendido. É fácil e bom diferenciar literatura e<br />
ciência, mas hipertrofiar essa diferença <strong>de</strong> modo <strong>de</strong>snecessário tem<br />
conseqüências <strong>de</strong>sagradáveis. Vamos nos ocupar <strong>de</strong> três diferenças<br />
<strong>de</strong>snecessárias -ou até falsas, sem mais- entre antropologia e literatura:<br />
A primeira é a que separa a verda<strong>de</strong> e a realida<strong>de</strong> da ciência da<br />
ficção irreal da literatura.<br />
A segunda é a que preten<strong>de</strong> que na literatura faltam o método e a<br />
teoria que caracterizam à ciência.<br />
Enfim, a terceira é a que enten<strong>de</strong> que ciência e literatura se<br />
caracterizam pelo uso <strong>de</strong> linguagens diferentes. Conceitos bem<br />
<strong>de</strong>finidos <strong>de</strong> um lado, metáforas e linguagem conotativa e vaga do<br />
outro.<br />
Vamos nos ocupar apenas brevemente <strong>de</strong>ssas três hiperplasias.<br />
Quanto à primeira nada impe<strong>de</strong> a literatura <strong>de</strong> tratar <strong>de</strong> assuntos tão<br />
reais como os <strong>de</strong> qualquer ciência, <strong>de</strong> um modo tão real como o <strong>de</strong><br />
qualquer ciência. E, <strong>de</strong> outro lado, nada evitará que as ciências<br />
humanas se ocupem em último termo das ficções humanas que são a<br />
matéria prima da sua realida<strong>de</strong>. Como já dissemos, a verda<strong>de</strong> ou a<br />
realida<strong>de</strong>, no âmbito científico, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> critérios convencionais, que<br />
já expusemos: assim, ciência e literatura são necessariamente<br />
diferentes pela presença ou ausência <strong>de</strong>sse critério <strong>de</strong> falsabilida<strong>de</strong>.<br />
Mas não pelos objetos <strong>de</strong> que tratam: po<strong>de</strong>-se fazer literatura sobre a<br />
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