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Estudos de Cinema e Audiovisual

AnaisDeTextosCompletos(XIX)

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materiais produzidos por outrem. Filmagens supostamente familiares se tornam estranhas em relação<br />

aos cineastas, resultando em apropriações <strong>de</strong>fasadas das imagens que pertencem ou pertenciam a<br />

eles.<br />

No artigo “A metafísica da juventu<strong>de</strong>”, o jovem Walter Benjamin (2011, p. 150) escreve: “o<br />

diário começa: esse livro insondável <strong>de</strong> uma vida não vivida, livro <strong>de</strong> uma vida em cujo tempo tudo<br />

aquilo que experimentamos ina<strong>de</strong>quadamente é transformado e aprimorado”. Com efeito, é algo da<br />

or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> uma ina<strong>de</strong>quação – seguida <strong>de</strong> uma transformação – que atravessa os filmes <strong>de</strong> Tonacci e<br />

<strong>de</strong> Yaël Andrè. A experiência passada, cujo tempo é recuperado e reapropriado pelo fluxo das<br />

imagens, difere continuamente <strong>de</strong> si mesma. A vida sensível, entendida como forma intencional ou<br />

figura, como specie, po<strong>de</strong> ser selecionada, remontada e reinventada pelos procedimentos do cinema.<br />

Mas a incongruência originária não se apaga. Se há filme-diário, ou autobiografia, é somente na<br />

medida em que as suas tessituras constituem uma promessa <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>, nunca concluída. Para<br />

seguir com Benjamin: “no diário, não há ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> experiências, do contrário não haveria intervalos.<br />

Em vez disso, o tempo é superado, e superado, também, o sujeito que age no tempo: sou transposto<br />

inteiramente no tempo; ele me irradia”.<br />

Em Já visto jamais visto, Tonacci percorre arquivos variados, dispersos no tempo e no<br />

espaço: filmes diversos, <strong>de</strong> sua própria autoria, fotografias pessoais, registros <strong>de</strong> família, fragmentos<br />

<strong>de</strong> filmagens, diários visuais, restos <strong>de</strong> montagem, projetos inacabados. Nesse caminho, distante <strong>de</strong><br />

qualquer gesto memorialístico, compõe-se uma escritura <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> ênfase, <strong>de</strong>sprendida ao<br />

mesmo tempo do real e do espetáculo. Não há tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>linear um sentido únivoco para as<br />

imagens, e muito menos <strong>de</strong> explicá-las <strong>de</strong> maneira exaustiva. À maneira dos sonhos ou das<br />

reminiscências, a forma do filme é composta sobretudo por elos fracos, por associações livres. Como<br />

afirma Roberta Veiga, trata-se <strong>de</strong> um trabalho que “se funda na memória enquanto obra, processo,<br />

construção, atravessada que é pelo esquecimen (VEIGA, 2015, p. 88). Enquanto ficção, fantasma <strong>de</strong><br />

si, projeção cinemática <strong>de</strong> um eu que se afirma e se nega ao adotar uma persona, uma máscara.<br />

João Dumans observa que os fragmentos <strong>de</strong> Já visto jamais visto são articulados quase que<br />

naturalmente pela montagem, “sem impor nada a força ao espectador, e sem recorrer a qualquer tipo<br />

<strong>de</strong> referência literária e textual mais concreta, como cartelas ou offs” (DUMANS, 2014). O que<br />

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