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Estudos de Cinema e Audiovisual

AnaisDeTextosCompletos(XIX)

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apresentar fotografias em combustão, enquanto um narrador assume a posição <strong>de</strong> autor das imagens<br />

e fala, em voz over, daquilo que está implicado em cada foto. O gesto se repete ao longo <strong>de</strong> cada<br />

plano do filme, com dois <strong>de</strong>talhes fundamentais: a voz do narrador não é a <strong>de</strong> Frampton, mas do<br />

amigo e cineasta Michael Snow, e a imagem <strong>de</strong>scrita pelos comentários é sempre a que virá no plano<br />

seguinte. No gesto do colecionador <strong>de</strong> fotos e na poética da assincronia levada adiante pelo filme,<br />

torna-se paradigmático o jogo que se estabelece na própria <strong>de</strong>fasagem entre voz e imagem, como<br />

que num contínuo processo <strong>de</strong> fazer fugir qualquer esquema <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação ou <strong>de</strong> expressão <strong>de</strong> um<br />

sujeito já dado na obra fílmica. Aqui uma tal dimensão subjetiva a priori é concretamente queimada,<br />

não apenas como uma metáfora, mas como um efetivo método <strong>de</strong> cinema que constitui no filme o<br />

lugar para a invenção <strong>de</strong> uma experiência, na própria duração da combustão.<br />

Essas posturas iconoclastas <strong>de</strong> Frampton já foram analisadas por Patrícia Mourão (2015), em<br />

uma aproximação muito estreita com os gestos <strong>de</strong> Marcel Duchamp. Ela toma como ponto <strong>de</strong><br />

provocação <strong>de</strong>sse encontro uma resposta <strong>de</strong> Duchamp a uma entrevista <strong>de</strong> 1962, na qual o artista<br />

dizia: “Minha intenção sempre foi escapar <strong>de</strong> mim mesmo, ainda que eu soubesse que eu estava me<br />

usando. Chame isso <strong>de</strong> um jogo entre ‘eu’ e ‘mim’”. Mourão toma esse mote, para discutir o processo<br />

criativo <strong>de</strong> Frampton como uma maneira <strong>de</strong> <strong>de</strong>sautenticar o próprio lugar <strong>de</strong> autoria e <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong><br />

do artista em relação a uma obra.<br />

A queima em (nostalgia) se constituiu materialmente, ao longo da duração <strong>de</strong> cada plano do<br />

filme, quando vemos as fotografias tiradas anos antes pelo artista entrarem em combustão diante da<br />

câmera. A queima se constitui como gesto, ao se transformar em um procedimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição <strong>de</strong><br />

evidências, <strong>de</strong> apagamento <strong>de</strong> rastros. É como se Frampton precisasse fazer um filme para disparar<br />

uma nova experiência, fundada em meio às cinzas <strong>de</strong>ssas imagens que, supostamente, teriam<br />

alguma relação indicial com a vida do realizador. Frampton brinca com o fogo, como quem se põe a<br />

<strong>de</strong>struir as provas <strong>de</strong> um crime. Enquanto o cinema se cria, a fotografia se <strong>de</strong>strói, enquanto uma<br />

memória é incendiada pela combustão, uma subjetivida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> encontrar condições <strong>de</strong> emergência,<br />

no ato mesmo <strong>de</strong> criação da obra.<br />

É preciso consi<strong>de</strong>rar aqui que essa queima expõe o próprio mecanismo <strong>de</strong> aparição e<br />

apagamento da imagem, entre o cinema e a fotografia. Ela é um recurso do procedimento pesquisado<br />

por Frampton para explicitar o processo mesmo pelo qual memória, sujeito e imagem não cessam <strong>de</strong><br />

entrar em jogos <strong>de</strong> <strong>de</strong>slizamento. Ao filmar a própria duração <strong>de</strong>ssa combustão das fotografias,<br />

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