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Estudos de Cinema e Audiovisual

AnaisDeTextosCompletos(XIX)

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<strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>nte ocorre. Vozes em off começam a discutir a <strong>de</strong>mora do plano. Alguém comenta que<br />

está <strong>de</strong>morando <strong>de</strong>mais e outro (provavelmente Kiarostami) respon<strong>de</strong>: "é o que estamos tentando<br />

mostrar; a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m leva tempo". A <strong>de</strong>mora afeta o espectador e a equipe em campo. O fotógrafo<br />

reclama que não é possível ver nada no plano. Kiarostami lhe respon<strong>de</strong> que <strong>de</strong>pois po<strong>de</strong>m fazer uma<br />

tomada mais aproximada. Mas o plano prossegue.<br />

Passados dois minutos, o fotógrafo questiona: "<strong>de</strong>vo continuar filmando?". Kiarostami insiste<br />

que sim e em seguida explicita: "é um experimento, não estamos trapaceando, estamos?". Após o<br />

ônibus finalmente sair, a cena é repetida, mas agora <strong>de</strong>cupada em outros dois planos aproximados (e<br />

a cena or<strong>de</strong>nada se repetirá também em um dos novos pontos <strong>de</strong> vista).<br />

A cena só é <strong>de</strong>cupada após o evento ser mostrado em sua integrida<strong>de</strong> espacial e temporal.<br />

Kiarostami expõe aqui um sentido para o plano geral sem cortes: a não trapaça. Impossível não nos<br />

lembrarmos <strong>de</strong> Bazin, para quem "o que <strong>de</strong>ve ser respeitado é a unida<strong>de</strong> espacial do acontecimento<br />

no momento em que sua ruptura transformaria a realida<strong>de</strong> em sua mera representação imaginária"<br />

(BAZIN, 1992, p. 62); para quem o plano-sequência integraria "o tempo real das coisas, a duração do<br />

evento ao qual a <strong>de</strong>cupagem clássica substituía insidiosamente um tempo intelectual e abstrato" (p.<br />

81).<br />

O que até então fora um filme rigidamente estruturado em <strong>de</strong>fesa da or<strong>de</strong>m, começa a se<br />

abrir para o real e, consequentemente, a afrouxar o dispositivo que apresentara <strong>de</strong> início para dar<br />

conta <strong>de</strong> um novo problema: a filmagem. A questão or<strong>de</strong>m x <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m passa a se misturar com uma<br />

reflexão sobre o próprio encontro do cinema com a realida<strong>de</strong>, um tema tão caro a Kiarostami.<br />

Tal realismo baziniano é posto à prova em duas outras sequências. A primeira <strong>de</strong>las mostra<br />

um garoto atravessando uma faixa <strong>de</strong> pe<strong>de</strong>stres, primeiramente <strong>de</strong> maneira or<strong>de</strong>nada e, em seguida,<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada. Diferentemente da cena do ônibus, a cena com or<strong>de</strong>m já é vista <strong>de</strong>cupada em oito<br />

planos (plano <strong>de</strong>talhe do semáforo <strong>de</strong> pe<strong>de</strong>stres, plano próximo do rosto do garoto que espera para<br />

atravessar, plano do alto da faixa <strong>de</strong> pe<strong>de</strong>stres etc.), o que parece <strong>de</strong> saída contrariar a fala <strong>de</strong><br />

Kiarostami sobre a trapaça. E a cena <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada, por sua vez, é vista por apenas um único plano,<br />

uma vista geral do alto, em que carros e pe<strong>de</strong>stres competem no mesmo espaço.<br />

A comparação entre os dois momentos acaba se confundindo com a comparação entre duas<br />

maneiras <strong>de</strong> filmar e montar. Subitamente, parece que passamos do rigor científico <strong>de</strong> antes (em que<br />

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