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Estudos de Cinema e Audiovisual

AnaisDeTextosCompletos(XIX)

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A imagem é atacada e sufocada pela força do relato verbal. Como não conseguimos mais<br />

acreditar no que a câmera nos mostra, no presente, passamos a ancorar nossa esperança <strong>de</strong> alguma<br />

veracida<strong>de</strong> sobre o mundo histórico e social que o filme se propõe a revelar na voz das testemunhas.<br />

E mesmo esta voz se mostra confusa, claramente mediada: ouvimos o diretor questionar a tradutora<br />

e os sobreviventes, ouvimos as perguntas da interprete e nos ren<strong>de</strong>mos às longas respostas das<br />

vítimas. Longas porque nos permitem testemunhar um momento único <strong>de</strong> acesso forçoso e doloroso<br />

ao passado. Simon Srebnik, um ju<strong>de</strong>u polonês que sobreviveu ao campo <strong>de</strong> Chelmo porque, ainda<br />

muito jovem, tinha uma voz apreciada pelos nazistas responsáveis pelo campo e cantava para distraílos,<br />

abre o filme. Caminha em uma trilha na mata para, com alguma dificulda<strong>de</strong>, encontrar algum<br />

vestígio do local on<strong>de</strong> ficava o campo. “Sim, era mesmo aqui”, diz ele, espontaneamente. A câmera<br />

se <strong>de</strong>sloca lentamente em uma panorâmica que revela uma pequena mureta <strong>de</strong> pedras tomada pelo<br />

mato. Como se respon<strong>de</strong>ssem à i<strong>de</strong>ntificação da testemunha, ouvimos sons que parecem ser <strong>de</strong><br />

corvos. Após reconhecer o espaço, Srebnik <strong>de</strong>screve a chegada dos caminhões <strong>de</strong> gás e a rotina <strong>de</strong><br />

matança das vítimas. O espaço presente funciona como um gatilho que faz emergir, em sua<br />

memória, o conjunto <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes visuais e ações do passado.<br />

O encontro entre presente e passado mediado pelo local não se dá apenas na presença<br />

física dos espaços dos acontecimentos. Algumas entrevistas acontecem nas casas ou trabalhos dos<br />

sobreviventes, que por diversos motivos não quiseram ou não pu<strong>de</strong>rem dar suas <strong>de</strong>clarações nos<br />

locais <strong>de</strong>terminados. Uma <strong>de</strong>stas entrevistas é a do barbeiro Abraham Bomba, em sua barbearia, em<br />

Israel. Bomba era um dos ju<strong>de</strong>us encarregados <strong>de</strong> cortar o cabelo dos homens e mulheres ju<strong>de</strong>us<br />

antes <strong>de</strong>les serem mortos na câmara <strong>de</strong> gás. Lanzmann o interroga sobre <strong>de</strong>talhes da ativida<strong>de</strong> que<br />

exercia no passado enquanto no presente ele corta os cabelos <strong>de</strong> um homem: a i<strong>de</strong>ia é evocar a<br />

lembrança pelo recurso à repetição do trabalho. A entrevista segue com Bomba cortando o cabelo e<br />

<strong>de</strong>screvendo seu cotidiano, até que ele trava: as palavras não são mais suficientes, ele se emociona,<br />

chora. O diretor insiste que ele retome o relato, ele recua, pe<strong>de</strong> para ser poupado, Lanzmann insiste<br />

<strong>de</strong> novo até que ele relembra um dia em que prolongou um corte masculino unicamente para que<br />

aquele homem pu<strong>de</strong>sse contemplar sua família por mais alguns minutos. A memória daquele instante<br />

foi tão vívida que não po<strong>de</strong> ser traduzida em narrativa, tendo sido retomada com muita insistência.<br />

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