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Estudos de Cinema e Audiovisual

AnaisDeTextosCompletos(XIX)

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O filme Sonhos (1990), <strong>de</strong> Akira Kurosawa, é uma coletânea <strong>de</strong> histórias curtas que finaliza<br />

com O vilarejo dos moinhos, historieta sobre a visita <strong>de</strong> um forasteiro a uma pequena cida<strong>de</strong> no<br />

interior do Japão. O rapaz, um mochileiro, encontra um velho ancião <strong>de</strong> quem recebe a explicação<br />

sobre porque os moradores daquele lugar comemoram com festa a morte <strong>de</strong> uma anciã. Segundo o<br />

interlocutor, uma vida vivida em plenitu<strong>de</strong> e por tanto tempo <strong>de</strong>ve ter seu fim visto com alegria.<br />

São concepções que, embora à primeira vista se contraponham, na verda<strong>de</strong> dialogam,<br />

mostrando o terreno frágil e <strong>de</strong> constante ressignificações em que se encontram as socieda<strong>de</strong>s<br />

contemporâneas. É nesse contexto que observamos o filme Uma passagem para Mário, que propõe<br />

uma releitura poética sobre o morrer. O documentário <strong>de</strong> Eric Laurence não briga com a morte, nem<br />

joga sobre essa ausência radical um olhar piedoso. Se é verda<strong>de</strong> que a vida para ter sentido precisa<br />

ser constantemente reescrita, estar aberta a reinvenções, o filme, em um processo <strong>de</strong> reinvenção do<br />

próprio documentário, ressignifica a vida <strong>de</strong> Mário mesmo <strong>de</strong>pois da morte.<br />

Ao tratar do conceito <strong>de</strong> rizoma, Deleuze e Guattari (2011) falam <strong>de</strong> um “crescimento das<br />

dimensões numa multiplicida<strong>de</strong> que muda necessariamente <strong>de</strong> natureza a medida que ela aumenta<br />

suas conexões. Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura,<br />

numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas”. (DELEUZE e GUATTARI, 2011, p. 24). Entre<br />

essas linhas, há as linhas <strong>de</strong> fuga, que marcam um número <strong>de</strong> dimensões preenchidas pela<br />

multiplicida<strong>de</strong>.<br />

Todo rizoma compreen<strong>de</strong> linhas <strong>de</strong> segmentarida<strong>de</strong> segundo as quais é<br />

estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído etc; mas<br />

compreen<strong>de</strong> também linhas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorialização pelas quais ele foge sem<br />

parar (DELEUZE e GUATTARI, 2011, p. 24).<br />

Passagem para Mário atualiza o significado da morte instituindo linhas <strong>de</strong> fuga. Para isso,<br />

reconfigura o dispositivo documentário, propõe a afirmação do afeto no lugar da dor e reafirma os<br />

sentidos da amiza<strong>de</strong>.<br />

Suas linhas <strong>de</strong> fuga vão além. Ocupam o espaço fora da tela, alcançando a proeza <strong>de</strong>,<br />

mesmo sendo um documentário nacional (o que em geral não interessa muito às salas comerciais<br />

exibidoras no Brasil), ocupar 14 salas <strong>de</strong> cinema.<br />

Assim como a vida <strong>de</strong> Mário não termina com sua morte biológica, a vida do filme segue bem<br />

além <strong>de</strong> sua produção e projeção convencional, se <strong>de</strong>sdobrando no projeto “1.000 Cineclubes”, que<br />

ocupou espaços alternativos <strong>de</strong> exibição como estratégia <strong>de</strong> difusão e <strong>de</strong>mocratização do filme. “No<br />

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