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Estudos de Cinema e Audiovisual

AnaisDeTextosCompletos(XIX)

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encaram essa imagem, nas suas diferentes partes, <strong>de</strong>stacando especialmente a experiência que os<br />

próprios corpos atravessaram no instante. Uma tatuagem é sublinhada, óculos são <strong>de</strong>stacados.<br />

O coral que se compõe surge, então, tanto como mútua reverberação entre palavra e<br />

imagem, embaralhando essas duas instâncias em busca <strong>de</strong> uma medida comum, uma medida que<br />

instaure uma modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coabitação entre as formas, para também fazer as vidas coabitarem um<br />

espaço e um tempo. Não se tem muita clareza <strong>de</strong> on<strong>de</strong> partem essas vozes, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se localizam<br />

esses corpos que falam sobre essas fotos. Mas esses seres que enunciam algo entre o vivido e o<br />

imaginado passam a coexistir, entre eles e com as imagens. Há aqui efetivamente uma multiplicação<br />

<strong>de</strong> vozes, uma aposta <strong>de</strong> que não bastava um só falar e enunciar ao longo <strong>de</strong> toda a duração da<br />

obra. E se a musicalida<strong>de</strong> é anunciada ao longo <strong>de</strong> todo o filme, a começar por uma melodia que é<br />

apenas murmurada antes mesmo <strong>de</strong> as imagens surgirem, essa centralida<strong>de</strong> da música se explicita<br />

finalmente na sequência final, a única na qual não estamos diante <strong>de</strong> fotografias. Nesse momento, o<br />

próprio realizador entra em cena para explicar ao primo, Júnior, a respeito <strong>de</strong> uma música eletrônica<br />

que lhe é muito cara. Os dois conversam, vistos em plano e contraplano, e ouvem juntos esses sons,<br />

a subida do sample, a curva <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>s da música, o conjunto <strong>de</strong> arranjos que são mobilizados.<br />

Mouramateus se implica na cena, insere o próprio corpo na <strong>de</strong>riva do coral, para en<strong>de</strong>reçar ao primo<br />

um presente, uma música, mas também – e sobretudo – a experiência <strong>de</strong> ouvir junto e <strong>de</strong> constituir<br />

um conjunto <strong>de</strong> afetos associados a essa escuta partilhada. Assim, o que tentamos construir aqui,<br />

com o filme, é como um coral que se faz gesto diz <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> atirar-se na escritura <strong>de</strong> modo<br />

partilhado, uma maneira <strong>de</strong> aparição conjunta que <strong>de</strong>svincula, progressivamente, a enunciação <strong>de</strong><br />

uma personalida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntitária. Se A Festa e os Cães começa mais diretamente a partir da própria<br />

vida do realizador e do seu processo <strong>de</strong> criação, progressivamente somos conduzidos a uma<br />

experiência sem centro, que comunica os sujeitos a um fora <strong>de</strong>les, que faz travessia por cida<strong>de</strong>s<br />

variadas, tanto por meio das festas, quanto por meio das ruas tomadas pelas matilhas <strong>de</strong> cães.<br />

O método do coral, se quisermos insistir aqui no acontecimento da cena, é o exercício <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>spossuir atores <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapropriar o texto <strong>de</strong> qualquer dado biográfico pessoal.<br />

Essa cena do comum precipita o gesto rumo a uma pura práxis na qual se cruzam vida e arte, ato e<br />

potência, postos em um só movimento <strong>de</strong> mútuo atravessamento. As palavras enunciadas pelas<br />

vozes em A Festa e os Cães ganham vida no próprio pôr-se em jogo e contaminar das fotografias na<br />

cena. Elas não <strong>de</strong>vem ser pensadas como um fio a ser buscado para compreen<strong>de</strong>r a vida <strong>de</strong> um<br />

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