Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev
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maravilhando-me com a agitação e barulho. Ele tinha ficado muito feliz em me<br />
ver, e me lembro <strong>de</strong> que afun<strong>de</strong>i a cara nos veludos, a filha <strong>de</strong> um aspirante a<br />
comerciante, orgulhosa e mimada. Mas agora o lugar estava <strong>de</strong>serto, com<br />
sombras escuras sob os arcos.<br />
— Está muito tar<strong>de</strong> para ficar na rua, pequeno mestre. Seus pais sabem<br />
on<strong>de</strong> está?<br />
Imobilizei-me. A voz <strong>de</strong>nsa como melado veio <strong>de</strong> alguma parte no fundo<br />
do escuro. Se eu retornasse po<strong>de</strong>ria alcançar a praça do Batistério em alguns<br />
momentos. Mas virar-me <strong>de</strong>nunciaria meu medo.<br />
Vi a figura <strong>de</strong> um monge emergir da noite, um homem gran<strong>de</strong> em vestes<br />
escuras <strong>de</strong> dominicano, a cabeça coberta por seu capuz. Apressei o passo.<br />
— Não há lugar em que possa se escon<strong>de</strong>r e que Deus não o veja, senhor.<br />
Tire o chapéu e me mostre sua face. — A sua voz agora soou ríspida. Mas eu<br />
estava quase na esquina e suas palavras me perseguiram quando submergi no<br />
escuro. — Isso, corra para casa, menino. Não <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> usar sua capa no<br />
confessionário para que eu saiba a quem dar a penitência.<br />
Tive <strong>de</strong> engolir um bocado para a saliva voltar à minha garganta. Distraíme<br />
concentrando-me no mapa em minha cabeça. Virei à esquerda e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
novo. O beco era alto e estreito. Eu <strong>de</strong>via estar perto da catedral quando ouvi a<br />
risada e percebi a sombra <strong>de</strong> dois homens emergindo do escuro à minha frente.<br />
Meu sangue gelou. Andavam <strong>de</strong> braços dados, tão absortos um com o outro que,<br />
por um instante, não <strong>de</strong>ram com a minha presença. Se eu retornasse, esbarraria<br />
com o frei e não havia ruas laterais entre eles e mim. Quanto mais rápido<br />
andasse, mais rápido tudo teria terminado.<br />
Um localizou-me antes do outro. Tirou o braço da cintura <strong>de</strong> seu<br />
companheiro e <strong>de</strong>u um passo em minha direção. Em segundos, o outro o seguiu,<br />
até os dois caminharem, <strong>de</strong>liberadamente, em minha direção com o espaço <strong>de</strong><br />
somente alguns pés entre eles. Baixei a cabeça até o chapéu <strong>de</strong> Tomaso cobrir<br />
inteiramente meu rosto e apertei o manto contra o corpo. Ouvi, mais do que vi,<br />
eles se aproximarem. Eu respirava com dificulda<strong>de</strong> e o meu sangue rugia em<br />
meus ouvidos. Estavam do meu lado antes que eu tivesse tempo <strong>de</strong> pensar, um<br />
<strong>de</strong> cada lado. Quis correr, mas tive medo que isso os provocasse. Curvei os<br />
ombros e contei os passos mentalmente.<br />
Quando me alcançaram, ouvi suas vozes sussurrarem como sons <strong>de</strong><br />
animais à minha volta, sibilantes e ameaçadores: "tchuc, tchuc, chuc, hiss, tchuc,<br />
chuc, hisss." Depois, risinhos afetados, quase femininos. Tudo o que pu<strong>de</strong> fazer<br />
foi não gritar. Ao passarem, senti seus corpos roçarem o meu. Então, <strong>de</strong> repente,<br />
tinham <strong>de</strong>saparecido. Ouvi suas risadas estri<strong>de</strong>ntes e confiantes, maliciosas, e<br />
quando olhei para trás, vi os dois juntos <strong>de</strong> novo, como água correndo, os braços<br />
dados, a brinca<strong>de</strong>ira esquecida, já absortos em seus próprios assuntos.