Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev
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Ele negou com a cabeça.<br />
— Você não enten<strong>de</strong>... você não enten<strong>de</strong>. Eu não <strong>de</strong>veria ter ido lá, nunca.<br />
Era tudo uma mentira. Não era Deus naquela sala, e sim outra coisa. O po<strong>de</strong>r da<br />
tentação. Depois que o exército chegou, Ele foi embora. Desapareceu. Os corpos<br />
pararam <strong>de</strong> chegar. A sala foi fechada. Havia rumores <strong>de</strong> corpos sendo<br />
encontrados na cida<strong>de</strong>. Uma garota e seu útero arrancado, o casal, o homem<br />
eviscerado. Nossos corpos... não sabemos... isto é... eu não sabia... — sacudiu a<br />
cabeça. — Não havia Deus naquela sala — repetiu, <strong>de</strong>ssa vez com raiva. — Era<br />
o Diabo, enten<strong>de</strong>? O frei diz que quanto mais pintamos o homem em vez <strong>de</strong><br />
Deus, mais per<strong>de</strong>mos a sua divinda<strong>de</strong>. O corpo é o Seu mistério. A Sua criação.<br />
Não cabe a nós compreendê-lo, somente adorá-lo. Cedi à tentação para<br />
conhecer. Desobe<strong>de</strong>ci e agora Ele me abandonou.<br />
— Oh, não, não... essa é a voz <strong>de</strong> Savonarola falando, não a sua — disse<br />
eu. — Ele quer que as pessoas tenham medo, que achem que Deus as<br />
abandonará. Assim, ficam sob seu controle, Esse pintor, quem quer que fosse,<br />
estava certo. Como po<strong>de</strong> ser maligno compreen<strong>de</strong>r o prodígio <strong>de</strong> Deus?<br />
Mas ele não respon<strong>de</strong>u.<br />
— E mesmo que fosse, Ele não o abandonaria por uma coisa assim —<br />
encorajei-o, aterrorizada com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perdê-lo novamente. — Seu<br />
talento é precioso <strong>de</strong>mais para Ele.<br />
— Você não enten<strong>de</strong> — repetiu e fechou os olhos com força. — Acabou,<br />
<strong>de</strong>sapareceu... Olhei fixo para o sol e meus olhos queimaram. Não posso mais<br />
pintar.<br />
— Não é verda<strong>de</strong> — disse eu baixinho, esten<strong>de</strong>ndo minhas mãos para ele.<br />
— Vi aqueles <strong>de</strong>senhos. Contêm verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais para serem ímpios.<br />
Você está só e perdido e foi tomado pelo <strong>de</strong>sespero. Tudo o que precisa é<br />
acreditar que voltará a enxergar e conseguirá. Suas mãos farão o resto. Dê-me<br />
suas mãos, pintor. Dê-me suas mãos.<br />
Ele ficou se balançando e choramingando por um momento, então,<br />
vagarosamente, soltou-as <strong>de</strong> seu corpo e esten<strong>de</strong>u-as a mim, as palmas para<br />
baixo. Segurei-as e, ao fazer isso, ele <strong>de</strong>u um grito <strong>de</strong> dor, como se o meu toque<br />
o tivesse queimado. Passei a segurá-lo pelas pontas dos <strong>de</strong>dos, frios como gelo,<br />
e virei suas mãos bem <strong>de</strong>vagar.<br />
— Oh. — Toda a minha <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za nunca seria o bastante. No meio <strong>de</strong><br />
suas palmas havia dois gran<strong>de</strong>s ferimentos, buracos escuros <strong>de</strong> sangue<br />
coagulado, a carne inchada ao redor <strong>de</strong> on<strong>de</strong> a infecção havia se instalado. Os<br />
buracos on<strong>de</strong> os pregos teriam penetrado. Pensei em São Francisco acordando<br />
em sua cela <strong>de</strong> pedra pleno do êxtase <strong>de</strong> Deus. E na minha própria intoxicação<br />
naquela noite, quando a dor do meu corpo tinha parecido quase um alívio à dor<br />
da minha mente. Mas a minha havia sido uma automutilação aci<strong>de</strong>ntal. Nem tão