Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev
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Onze<br />
COM CARLOS E SEU EXÉRCITO NA fronteira toscana e o pânico rondando<br />
os portões da cida<strong>de</strong>, Florença refugiou-se na igreja.<br />
Havia tanta gente em Santa Maria <strong>de</strong>l Fiore nesse domingo, que a<br />
multidão se <strong>de</strong>rramava escada abaixo. Minha mãe disse que nunca tinha visto<br />
tanta gente reunida para a missa, mas a minha impressão era a <strong>de</strong> que estávamos<br />
esperando o Juízo Final. Ao erguer os olhos para o domo, senti, como sempre,<br />
uma vertigem repentina, como se a sua escala <strong>de</strong>sequilibrasse a mente. Meu pai<br />
dizia que o prodígio <strong>de</strong> Brunelleschi ainda era assunto na Europa — como uma<br />
estrutura tão gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria ter-se erigido sem a ajuda das tradicionais vigas <strong>de</strong><br />
apoio. Ainda hoje, quando imagino o final se aproximando, penso em Santa<br />
Maria <strong>de</strong>l Fiore ocupada pela massa <strong>de</strong> <strong>de</strong>votos erguendo-se das covas, o domo<br />
animado pelas batidas das asas dos anjos. No entanto, esperava que o Juízo Final<br />
cheirasse melhor, já que, nesse dia, o mau cheiro <strong>de</strong> tantos corpos pairava no ar<br />
como uma névoa <strong>de</strong> incenso fétido. Várias mulheres mais pobres já tinham<br />
<strong>de</strong>smaiado, pois, aparentemente, as mais <strong>de</strong>votas tinham começado a jejuar sob<br />
as or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> Savonarola, para conduzir a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> volta a Deus. Seria preciso<br />
mais tempo para as ricas <strong>de</strong>sfalecerem, se bem que notei que tinham sido<br />
repreendidas cautelosamente: não era hora <strong>de</strong> correrem o risco <strong>de</strong> ser culpadas<br />
<strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>.<br />
Quando subiu ao púlpito, o lugar murmurava com <strong>de</strong>voção. Mas, então,<br />
com a sua chegada, impôs-se um silêncio mortal. Foi a suprema ironia da época<br />
que o homem mais feio <strong>de</strong> Florença fosse também o homem mais pio. Havia<br />
uma convicção em sua eloqüência que quando pregava esquecia-se <strong>de</strong> seu corpo<br />
anão, <strong>de</strong> seus pequenos olhos penetrantes e o nariz recurvo como o bico <strong>de</strong> uma<br />
águia. Ele e seu arquiinimigo Lorenzo, juntos, teriam sido material para<br />
gárgulas. Quase era possível imaginar um díptico em que seus perfis se<br />
confrontavam, os narizes tão pronunciados quanto suas personalida<strong>de</strong>s, a cida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Florença, o campo <strong>de</strong> batalha dos dois, no segundo plano. Mas quem<br />
arriscaria essa pintura agora? Quem se at<strong>rev</strong>eria a encomendá-la?<br />
Seus inimigos diziam que ele era tão pequeno que, para aumentar seu<br />
tamanho, ficava em pé sobre livros, traduções <strong>de</strong> Aristóteles e dos clássicos que<br />
seus monges lhe buscavam, <strong>de</strong> modo que seus pés pu<strong>de</strong>ssem saqueá-los. Outros<br />
afirmavam que usava um banquinho <strong>de</strong> sua cela, uma das poucas peça <strong>de</strong><br />
mobília que se permitia ter em uma vida <strong>de</strong> extremo ascetismo. Dizia-se que era<br />
a única cela em San Marco que não continha um quadro religioso, <strong>de</strong> tal modo<br />
<strong>de</strong>sconfiava do po<strong>de</strong>r da arte para arruinar a pureza da fé, e que aplacava