Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev
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Usei o livro como <strong>de</strong>scanso para o papel e o apoiei sobre seus joelhos.<br />
Ergueu os olhos para mim. O <strong>de</strong>sespero atravessou seu rosto <strong>de</strong> novo.<br />
Insensibilizei meu coração à sua dor.<br />
— Ele <strong>de</strong>u-lhe o calor, pintor. Isto é o mínimo que po<strong>de</strong> fazer por ele<br />
antes <strong>de</strong> morrer.<br />
Ele começou a mover a mão pela página. O traço teve início, <strong>de</strong>pois<br />
escorregou. O carvão caiu no chão. Peguei-o e o pus <strong>de</strong> novo em sua mão.<br />
Delicadamente, coloquei minha mão em concha sobre a sua, entrelaçando meus<br />
<strong>de</strong>dos nos seus, com cuidado para não tocar no machucado, oferecendo meus<br />
músculos como lastro, quando tinha <strong>de</strong> empurrar o carvão. Aspirou<br />
profundamente. Fiz os primeiros traços com ele, <strong>de</strong>ixando-o guiar a linha.<br />
Lentamente, cuidadosamente, o contorno <strong>de</strong> uma face surgiu por <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong><br />
nossos traços. Depois <strong>de</strong> algum tempo, senti seus <strong>de</strong>dos se fortalecerem e retirei<br />
os meus. Observei quando, apesar da dor, completou o <strong>de</strong>senho.<br />
O rosto <strong>de</strong> um homem velho apareceu na página, seus olhos fechados, um<br />
meio sorriso em seus lábios, e embora não se inflamasse do amor <strong>de</strong> Deus,<br />
tampouco estava paralisado no vazio.<br />
O esforço lhe custara, e quando terminou, e o carvão caiu <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>dos, a<br />
sua pele estava cinza <strong>de</strong> dor.<br />
Peguei um pedaço do pão sobre a mesa e o molhei no vinho, <strong>de</strong>pois leveio<br />
a seus lábios.<br />
Aceitou-o e mastigou-o lentamente, tossindo um pouco. Esperei até que<br />
engolisse, <strong>de</strong>pois alimentei-o com um pouco mais. Aos pouquinhos, pedaço por<br />
pedaço, gole por gole.<br />
Por fim, sacudiu a cabeça. Se exagerasse, ele sentiria náusea.<br />
— Estou com frio — disse ele, por fim, os olhos ainda fechados. — Estou<br />
<strong>de</strong> novo com frio.<br />
Subi na cama e me <strong>de</strong>itei do seu lado. Pus meu braço sob a sua cabeça e<br />
ele se virou, enroscando-se, como uma criança em meus braços. Envolvi-me ao<br />
redor <strong>de</strong>le. Ficamos assim e ele foi se aquecendo em meus braços. Depois <strong>de</strong><br />
algum tempo, ouvi sua respiração se regularizar e seu corpo relaxar contra o<br />
meu. Senti-me em paz e muito feliz. Se não tivesse medo <strong>de</strong> também adormecer,<br />
acho que ficaria ali até amanhecer e sairia furtivamente antes da casa <strong>de</strong>spertar.<br />
Comecei a me mover sub-repticiamente, puxando bem <strong>de</strong>vagar meu braço<br />
direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> sua cabeça para me soltar. Mas o movimento perturbou-o e<br />
ele gemeu baixinho, rolando em seu sono, imprensando-me na cama com o peso<br />
<strong>de</strong> seu ombro e cabeça, e jogando seu outro braço sobre meu corpo.<br />
Esperei que se acomodasse para tentar <strong>de</strong> novo. Na luz da lamparina, seu<br />
rosto estava perto do meu. Apesar <strong>de</strong> a fome ter aguçado suas feições, a sua pele<br />
era quase translúcida, mais a pele <strong>de</strong> uma garota do que a <strong>de</strong> um rapaz. Suas