Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev
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Virei-me. Seus passos retroce<strong>de</strong>ram e a porta foi fechada.<br />
Ele não tinha se movido. Arrisquei. Tirei os esboços <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do meu<br />
vestido e dispus alguns <strong>de</strong>les no chão, perto do prato, <strong>de</strong> modo que as tripas do<br />
homem ficassem do lado dos restos <strong>de</strong> carne.<br />
— Sei há muito tempo — disse eu baixinho. — Estive no seu quarto. Vi<br />
todos eles. É isso que não po<strong>de</strong> contar?<br />
Estremeceu.<br />
— Não é o que está pensando — a sua voz foi um rosnado repentino. —<br />
Não lhes fiz mal. Não machuquei ninguém... — interrompeu-se.<br />
Dessa vez fui em sua direção, e se não era a coisa certa a fazer, então não<br />
seria eu a julgá-la. Estava vivendo em um mundo em que um marido entra em<br />
uma mulher como se ela fosse uma vaca, e homens se beijam e se penetram com<br />
uma paixão e <strong>de</strong>voção que fariam os santos corarem. Não existia mais um<br />
comportamento correto. Pus meus braços, <strong>de</strong>licadamente, em volta <strong>de</strong> seu corpo.<br />
Ele emitiu um gemido, se bem que <strong>de</strong> dor ou <strong>de</strong>sespero eu não sabia. Sua pele<br />
estava fria e retesada como a <strong>de</strong> um cadáver, e ele estava tão magro que eu podia<br />
sentir cada osso <strong>de</strong> seu corpo.<br />
— Conte-me, pintor, conte-me...<br />
A voz <strong>de</strong>le, quando falou, soou grave e hesitante, o penitente buscando as<br />
palavras certas.<br />
— Ele disse que o corpo humano era a maior criação <strong>de</strong> Deus e que, para<br />
entendê-lo, tinha-se <strong>de</strong> conhecer sob a pele. Somente <strong>de</strong>ssa maneira po<strong>de</strong>ríamos<br />
apren<strong>de</strong>r a dar-lhe vida. Eu não era o único. Havia seis ou sete <strong>de</strong> nós.<br />
Encontrávamo-nos à noite em uma sala no hospital <strong>de</strong> Santo Spirito, do lado da<br />
igreja. Os cadáveres pertenciam à cida<strong>de</strong>, ele disse, pessoas que não tinham<br />
família para reclamá-los, ou criminosos, corpos vindos dos cadafalsos. Ele disse<br />
que Deus enten<strong>de</strong>ria. Porque a sua glória viveria em nossa arte.<br />
— Ele? Quem é esse "Ele"?<br />
— Não sei seu nome. Era jovem, mas não havia nada que não conseguisse<br />
<strong>de</strong>senhar. Uma vez, levaram um garoto, <strong>de</strong> quinze ou <strong>de</strong>zesseis anos. Havia<br />
morrido <strong>de</strong> alguma coisa no cérebro, mas seu corpo estava perfeito. Ele disse<br />
que o menino era jovem <strong>de</strong>mais para ter sido corrompido. Disse que seria o<br />
nosso Jesus. Eu ia pô-lo no afresco. Mas antes que pu<strong>de</strong>sse pintá-lo, ele retornou<br />
com a sua Crucificação. Foi esculpida em cedro-branco. O corpo era tão<br />
perfeito, tão vivo, dava para sentir cada músculo, cada tendão. Tive certeza <strong>de</strong><br />
que era Cristo. Eu não podia...<br />
Interrompeu-se <strong>de</strong> novo. Soltei-o e recuei para po<strong>de</strong>r olhá-lo, avaliar o<br />
dano que essas palavras tinham lhe causado.<br />
— E quanto mais Deus fluía por ele mais o extenuava — disse eu<br />
calmamente. — Foi isso o que aconteceu?