Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev
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começo foi inflexível, <strong>de</strong>clarando que não havia nada a ser feito. Depois <strong>de</strong> um<br />
encontro com a Reverenda Madre, que fez com que essa se atrasasse para as<br />
vésperas, não se tocou mais no assunto. Afinal, a morte era uma escala<br />
temporária em uma viagem mais longa, o que, em uma casa <strong>de</strong> Deus, era algo<br />
que, mais do que temido, <strong>de</strong>veria ser recebido com prazer. Em suas últimas<br />
horas, ela foi ficando cada vez mais ensan<strong>de</strong>cida <strong>de</strong> dor e febre. As fortes<br />
concocções <strong>de</strong> ervas não lhe provocavam nenhum alívio. Enquanto, antes,<br />
suportara seu sofrimento com coragem, era, agora, ouvida uivando noite a<strong>de</strong>ntro<br />
como um animal, um som <strong>de</strong>sesperado que assustava <strong>de</strong>spertando as jovens<br />
freiras nas celas próximas. Junto com o uivo, ouviam-se palavras esporádicas,<br />
gritadas em explosões em staccato ou sussurradas como versos <strong>de</strong> uma oração<br />
<strong>de</strong>svairada; latim, grego e toscano, tudo junto em uma pasta verbal espessa.<br />
Finalmente, foi levada por Deus em uma manhã, quando mais um dia<br />
abafado <strong>de</strong>spontava. O padre que fora ministrar os ritos finais tinha-se ido e ela<br />
estava só com uma das irmãs enfermeiras que contou como, no momento em<br />
que sua alma partia, o rosto <strong>de</strong> Lucrezia havia se transformado miraculosamente,<br />
as linhas gravadas pela dor se <strong>de</strong>sfazendo, <strong>de</strong>ixando a pele lisa, quase<br />
translúcida; um eco da jovem e <strong>de</strong>licada freira que chegara às portas do<br />
convento trinta anos antes.<br />
A morte foi anunciada formalmente no ofício das matinas. No entanto, por<br />
causa do calor (a temperatura nos últimos dias tinha <strong>de</strong>rretido a manteiga na<br />
cozinha), acharam necessário enterrar o corpo <strong>de</strong> dia. Era costume do convento<br />
conce<strong>de</strong>r a toda irmã que partia a dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um corpo limpo, assim como<br />
uma alma imaculada e vesti-la em um hábito novo; um vestido <strong>de</strong> noiva para a<br />
noiva que finalmente se unia ao seu marido divino. Esse ritual era realizado pela<br />
Irmã Magdalena que administrava a farmácia e ministrava os remédios<br />
(recebendo uma dispensa especial para ver o corpo físico na mais divina das<br />
ocasiões), auxiliada por uma freira mais jovem, a Irmã Maria, que acabaria por<br />
assumir a tarefa. Juntas, lavavam e vestiam o corpo, <strong>de</strong>pois o <strong>de</strong>itavam na capela<br />
on<strong>de</strong> permanecia por um dia, enquanto o resto do convento prestava seus<br />
respeitos. Mas nessa ocasião seus serviços não foram solicitados. Irmã Lucrezia,<br />
parece, tinha feito um pedido especial antes <strong>de</strong> morrer: que o seu corpo<br />
permanecesse intocado, no hábito em que ela servira ao Senhor por todos esses<br />
anos. Era, no mínimo, um pedido incomum — houve comentários entre as irmãs<br />
se isso <strong>de</strong>veria ser qualificado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sobediência —, mas a Reverenda Madre o<br />
havia sancionado e não seria contestado se não fossem as notícias, também<br />
recebidas nessa manha, da erupção <strong>de</strong> uma epi<strong>de</strong>mia na al<strong>de</strong>ia vizinha.<br />
O convento era separado do vilarejo <strong>de</strong> Loro Ciufenna por uma cavalgada<br />
vigorosa, embora a velocida<strong>de</strong> da pestilência se igualasse à das patas <strong>de</strong><br />
qualquer cavalo. O primeiro sinal se manifestara, aparentemente, há três dias,