Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev
Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev
Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Trinta e Um<br />
NÓS O LEVAMOS NA CARROÇA <strong>de</strong> meu pai. Ele não resistiu. Qualquer que<br />
fosse a luta que andara travando, tinha se encerrado, e parecia grato por qualquer<br />
<strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> afeto. Quando Maria percebeu o que estávamos fazendo, acho<br />
que quis me <strong>de</strong>ter, mas ela já não tinha a mesma autorida<strong>de</strong>, e só lhe restava<br />
olhar e se queixar. Quando me perguntou, como fez repetidamente, o que estava<br />
acontecendo, respondi-lhe a mesma coisa que dissera na carta que <strong>de</strong>ixei para a<br />
minha mãe: que tinha encontrado o pintor doente, na capela, e o estava levando<br />
para a minha casa, para cuidar <strong>de</strong>le.<br />
De qualquer maneira, era a verda<strong>de</strong>. Que sofria <strong>de</strong> algum tipo <strong>de</strong><br />
enfermida<strong>de</strong> era óbvio a qualquer um que o visse quando o ajudamos a sair da<br />
capela e <strong>de</strong>scer para o pátio. Parecia que ia se esfacelar quando o sol o atingiu;<br />
um tremor terrível percorreu seu corpo e seus <strong>de</strong>ntes bateram até dar a impressão<br />
<strong>de</strong> que chocalhariam os ossos <strong>de</strong> seu crânio. Na meta<strong>de</strong> do caminho, <strong>de</strong>smaiou, e<br />
teve <strong>de</strong> ser carregado nos últimos lances <strong>de</strong> escada.<br />
Nós o envolvemos em mantas e o colocamos <strong>de</strong>licadamente na parte <strong>de</strong><br />
trás da carroça. Antes <strong>de</strong> o removermos da capela, Erila e eu suspen<strong>de</strong>mos <strong>de</strong><br />
novo as lonas, trancamos as duas portas e levamos as chaves conosco. Se<br />
chegou a achar alguma coisa do que viu nas pare<strong>de</strong>s e no teto, não me disse<br />
nada.<br />
Quando ultrapassamos os portões, já era quase noite. Sentei-me na parte<br />
<strong>de</strong> trás da carroça, Erila a conduzindo. Ela estava nervosa. Acho que foi a<br />
primeira vez que a vi <strong>de</strong>ssa maneira. Era, disse ela, uma má hora para estar na<br />
rua. Ao entar<strong>de</strong>cer, os jovens guerreiros <strong>de</strong> Savonarola saíam para impor o seu<br />
toque <strong>de</strong> recolher, enxotando homens e mulheres duas vezes mais velhos do que<br />
eles pela cida<strong>de</strong>, para as suas casas, para longe das tentações das ruas. E como<br />
tinham assumido a tarefa <strong>de</strong> dividir os a<strong>de</strong>ptos dos tentados, e ajudar os últimos<br />
fazendo com que sua jornada para casa fosse mais rápida e mais dolorosa, era<br />
preciso ter uma boa história pronta para qualquer eventualida<strong>de</strong>.<br />
Esbarramos com eles ao dobrarmos a esquina pelas gran<strong>de</strong>s alas do<br />
Palazzo Strozzi, um edifício que teria sido o maior palácio da cida<strong>de</strong> se não<br />
tivesse sido <strong>de</strong>ixado inacabado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a morte <strong>de</strong> Filippo Strozzi. Era uma morte<br />
que Savonarola tinha usado freqüentemente como material nos sermões, para<br />
ilustrar o absurdo <strong>de</strong> valorizar a riqueza mais do que a promessa da vida eterna.<br />
Nesse meio-tempo, a cida<strong>de</strong> se habituara tanto com a fachada inacabada do<br />
palácio, que não conseguia mais imaginar como seria se chegasse a ser<br />
completada.