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Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev

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suponho que ache que ele está na igreja.<br />

O que, suponho, <strong>de</strong> certa maneira ele realmente estava.<br />

Na cozinha do andar <strong>de</strong> cima, o cozinheiro mostrou-se fleumático em<br />

relação ao assunto. Se o homem não queria comer, não queria comer. Nos<br />

últimos quatro dias, a comida não tinha sido tocada.Talvez Deus o estivesse<br />

alimentando. Afinal, João Batista tinha vivido <strong>de</strong> gafanhotos e mel durante<br />

quarenta dias.<br />

— Mas aposto que não era tão gostoso quanto a sua torta <strong>de</strong> pombo —<br />

disse eu.<br />

— A senhora sempre comeu bem — ele sorriu largo. — Aqui ficou muito<br />

silencioso sem a senhora.<br />

Permaneci por alguns instantes observando seus <strong>de</strong>dos cortando uma<br />

<strong>de</strong>zena <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> alho mais rápido do que um agiota separando as moedas.<br />

Minha infância passara-se toda ali, nos aromas e gostos <strong>de</strong>ssa cozinha: pimenta<br />

preta e vermelha, gengibre, cravo, açafrão, cardamomo e a doçura pungente do<br />

nosso manjericão moído. Um império <strong>de</strong> comércio sobre o cepo.<br />

— Prepare-lhe um prato com algo especial — disse eu. — Alguma coisa<br />

cujo aroma lhe dê água na boca. Talvez ele hoje sinta fome.<br />

— Talvez esteja morto.<br />

Ele não disse isso cruelmente, e sim <strong>de</strong> um modo banal. Relembrei a<br />

magnanimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meu pai com o pintor quando ele chegou naquela noite <strong>de</strong><br />

primavera há tanto tempo. Lembrei-me da excitação que todos sentimos: um<br />

artista <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> vivendo sob o nosso teto, capturando a nossa família para a<br />

posterida<strong>de</strong>. Todos tínhamos visto isso como sinal do prestígio da família, uma<br />

<strong>de</strong>claração do nosso status, nosso futuro. Agora, isso parecia passado.<br />

Deixei Erila e os outros criados na cozinha, mexericando com o<br />

cozinheiro, e <strong>de</strong>sci a escada, atravessei o pátio do fundo, até os aposentos do<br />

pintor. Não tinha idéia do que estava procurando. O trajeto foi dominado pela<br />

lembrança <strong>de</strong> mim mais jovem, a garota pulando na minha frente, saindo<br />

furtivamente da casa principal durante o calor da sesta para enfrentar o recémchegado<br />

em seu quarto, com seu entusiasmo e curiosida<strong>de</strong> sem limites. Que<br />

conselho eu lhe daria hoje? Não conseguia mais ver em que ponto tudo tinha<br />

começado a dar errado.<br />

A porta do seu quarto estava fechada, mas não trancada. Dentro, a<br />

atmosfera era bolorenta, um bafejo <strong>de</strong> negligência no ar. As figuras exuberantes<br />

do Anjo e Maria na pare<strong>de</strong> da câmara externa tinham escamado o reboco sem<br />

preparo, como uma relíquia <strong>de</strong> uma época mais antiga. A mesa sobre a qual ele<br />

mantinha seus esboços estava vazia e o crucifixo <strong>de</strong>saparecera da pare<strong>de</strong>. No<br />

interior do quarto, a cama era um chumaço <strong>de</strong> palha com um pano encardido<br />

jogado em cima. Seus poucos pertences tinham ido com ele para a capela.

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