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Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev

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Estava assustada por mim, é claro, lembrando-se da noite da minha<br />

própria loucura quando, por um instante, meu sangue tinha-se tornado a minha<br />

tinta. E porque ela não era nenhuma idiota, a minha Erila, levei em consi<strong>de</strong>ração<br />

o que disse. É claro que o sofrimento e o terror <strong>de</strong>sse rosto jovem tinham saído<br />

da página e se aferrado ao meu cérebro. Que ela e os outros tinham sido pintados<br />

da vida real não havia sombra <strong>de</strong> dúvida. Ou da morte. Mas a verda<strong>de</strong>ira questão<br />

era on<strong>de</strong> ele tinha estado quando um estado se transformara no outro. Pensei <strong>de</strong><br />

novo no misto <strong>de</strong> pânico e doçura nele. Relembrei meu sarcasmo com ele<br />

naquele primeiro dia e a sua reação <strong>de</strong> fúria <strong>de</strong>sajeitada. Lembrei-me também <strong>de</strong><br />

sua <strong>rev</strong>elação lenta e tímida, quando posei para ele, e a maneira como falou <strong>de</strong><br />

Deus introduzindo-se em suas mãos quando era criança. De alguma maneira eu<br />

sabia que, por mais perdido e louco que pu<strong>de</strong>sse estar, não me faria mal.<br />

E quanto à minha própria casa? Bem, não havia como me aquecer lá. Eu<br />

era uma forasteira. Seria melhor para mim perseguir companheiros com as<br />

mesmas idéias para aliviar a minha solidão.<br />

— Eu sei o que estou fazendo, Erila — disse com uma <strong>de</strong>terminação<br />

tranqüila. — Chamo-a, se precisar. Prometo.<br />

Ela estalou a língua, como sempre fazia, mania que eu adorava, pois dizia<br />

tanto com tão pouco, e soube que ele <strong>de</strong>ixaria eu ir.<br />

Ela pôs a ban<strong>de</strong>ja perto da entrada, <strong>de</strong> modo que o cheiro da carne<br />

recentemente preparada passasse por <strong>de</strong>baixo da ma<strong>de</strong>ira. Isso trouxe <strong>de</strong> volta o<br />

eco <strong>de</strong> mil manhãs da minha infância, quando jejuava para a missa, sentindo-me<br />

culpada porque o prospecto do corpo <strong>de</strong> Deus em minha língua era menos<br />

excitante do que o aroma da carne assada que vinha da cozinha quando eu<br />

chegava em casa. Como seria senti-lo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> dias sem comer, eu não podia<br />

sequer imaginar.<br />

Recuei e fiz um sinal para ela.<br />

Ela bateu com força.<br />

— Sua comida está aqui — disse com uma voz retumbante. — O<br />

cozinheiro disse que se não comê-la, vai parar <strong>de</strong> enviá-la. E pombo assado,<br />

legumes com ervas e uma jarra <strong>de</strong> vinho. — Ela bateu <strong>de</strong> novo. — É a última<br />

chance, pintor.<br />

Então, fiz outro sinal, e ela começou a <strong>de</strong>scer ruidosamente, pisando<br />

pesado nas pedras. Embaixo, parou e olhou para mim.<br />

Esperei. Por um tempo, nada aconteceu. Então, finalmente, ouvi um ruído<br />

<strong>de</strong> pés se arrastando em algum ponto atrás da porta. A tranca estalou e a porta<br />

abriu-se um pouquinho. Uma figura maltrapilha saiu e curvou-se para pegar a<br />

ban<strong>de</strong>ja.<br />

Dei um passo à frente, saindo das sombras, exatamente como tinha feito<br />

naquela noite, quando seus <strong>de</strong>senhos se espalharam pelo chão. Tinha-se

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