Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev
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ajudando-o a <strong>de</strong>smontar e escolhendo um cômodo separado, no pátio dos<br />
fundos, como seus aposentos.<br />
Mais tar<strong>de</strong>, quando meu pai <strong>de</strong>sembrulhou a tapeçaria flamenga para a<br />
minha mãe e abriu o tecido <strong>de</strong>licado, todo bordado, branco como leite, para nós<br />
("As mulheres <strong>de</strong> Rennes ficam cegas cedo servindo à beleza <strong>de</strong> minhas filhas"),<br />
nos contou como o encontrara, um órfão levado ao mosteiro à beira do mar ao<br />
norte on<strong>de</strong> a água ameaça a terra. Como o seu talento com uma pena tinha<br />
dominado qualquer senso <strong>de</strong> vocação religiosa, e, portanto, os monges o tinham<br />
empregado como aprendiz <strong>de</strong> um mestre, e quando ele retornou, como prova <strong>de</strong><br />
gratidão, tinha pintado não apenas a própria cela, mas as celas <strong>de</strong> todos os outros<br />
monges. Foram essas pinturas que impressionaram meu pai, que <strong>de</strong>cidiu<br />
oferecer-lhe, imediatamente, a tarefa <strong>de</strong> glorificar a nossa capela. Embora eu<br />
<strong>de</strong>va acrescentar que, apesar <strong>de</strong> conhecer tecido, meu pai não era um gran<strong>de</strong><br />
perito em arte, e suspeito que sua <strong>de</strong>cisão tenha sido muito mais ditada pelo<br />
dinheiro, pois sempre teve bom olho para uma barganha. E o pintor? Bem, como<br />
meu pai colocou — não havia mais celas para pintar e a fama <strong>de</strong> Florença como<br />
a nova Roma ou Atenas da nossa era, sem dúvida o incitaria a vê-la com os<br />
próprios olhos.<br />
E assim, o pintor foi morar na nossa casa.<br />
Na manhã seguinte, fomos à Santíssima Annunziata agra<strong>de</strong>cer o retorno<br />
seguro <strong>de</strong> meu pai. A igreja fica do lado do Ospedale <strong>de</strong>gli Innocenti, o hospital<br />
<strong>de</strong> crianças enjeitadas, on<strong>de</strong> mulheres jovens colocam seus bebês bastardos<br />
sobre a roda para as freiras cuidarem <strong>de</strong>les. Ao passarmos, imagino o choro dos<br />
bebês enquanto a roda no muro gira para <strong>de</strong>ntro, para sempre, mas meu pai diz<br />
que somos uma cida<strong>de</strong> caridosa e que existem lugares, no Norte selvagem, em<br />
que encontramos bebês no meio do lixo ou flutuando, como <strong>de</strong>stroços <strong>de</strong><br />
naufrágio, rio abaixo.<br />
Sentamo-nos juntos nos bancos do centro. Acima <strong>de</strong> nossas cabeças,<br />
pen<strong>de</strong>m gran<strong>de</strong>s maquetes <strong>de</strong> navios doadas por aqueles que tinham sob<strong>rev</strong>ivido<br />
a naufrágios. Meu pai esteve em um certa vez, embora na época não fosse rico o<br />
bastante para encomendar um memorial na igreja, e nessa sua última viagem<br />
sofreu apenas enjôos. Ele e minha mãe sentavam-se eretos como varas e dava<br />
para sentir sua mente na magnanimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Nós, os filhos, somos menos<br />
santos. Plautilla continua estouvada, com o pensamento em seus presentes,<br />
enquanto Tomaso e Luca parecem que prefeririam estar na cama, embora a<br />
reprovação <strong>de</strong> meu pai os mantenha alertas.<br />
Quando retornamos, a casa cheira a comida <strong>de</strong> feriado — a doçura da<br />
carne assada e molhos condimentados <strong>de</strong>scendo em espirais pelas escadas, da<br />
cozinha lá em cima até o pátio embaixo. Comemos quando a tar<strong>de</strong> se transforma<br />
em noite. Primeiro agra<strong>de</strong>cemos a Deus, <strong>de</strong>pois nos empanturramos: frango