Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev
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— Frio? — falei. — Como?<br />
Respirou fundo, como se fosse a primeira vez em muito tempo, e, então,<br />
calou-se <strong>de</strong> novo. Esperei. Tentou <strong>de</strong> novo e, <strong>de</strong>ssa vez, as palavras saíram mais<br />
fáceis.<br />
— Fazia frio. No mosteiro. Às vezes, o vento vinha do mar, trazendo o<br />
gelo junto... Enregelava a pele do rosto. Um inverno, a neve estava tão funda<br />
que não pu<strong>de</strong>mos passar da porta para ir até o galpão <strong>de</strong> lenha. Um monge pulou<br />
<strong>de</strong> uma janela. Afundou-se no monte <strong>de</strong> neve e precisou <strong>de</strong> muito tempo para se<br />
levantar. Nessa noite, me colocaram para dormir do lado do fogão. Eu era<br />
pequeno, magro, como um pedaço <strong>de</strong> casca <strong>de</strong> vidoeiro. Mas então o fogo<br />
extinguiu-se.<br />
"O Padre Bernard levou-me para a sua cela... Foi ele quem primeiro me<br />
<strong>de</strong>u carvão e papel. Era tão velho que seus olhos pareciam que estavam<br />
chorando. Mas nunca estava triste. No inverno, usava menos cobertores do que<br />
nós todos. Dizia que não precisava <strong>de</strong>les porque Deus o aquecia."<br />
Ouvi-o engolir, sua garganta seca <strong>de</strong> falar. Erila tinha <strong>de</strong>ixado um pouco<br />
<strong>de</strong> vinho doce na mesa <strong>de</strong> cabeceira. Verti um pouco em um copo e o aju<strong>de</strong>i a<br />
beber.<br />
— Mas nessa noite, até mesmo o Padre Bernard sentiu frio. Deitou-me na<br />
cama do seu lado, envolveu-me em uma pele <strong>de</strong> animal e em seus braços.<br />
Contou-me histórias <strong>de</strong> Jesus. Como o Seu amor podia <strong>de</strong>spertar os mortos e<br />
como, com Ele no coração, podia-se aquecer o mundo... Quando acor<strong>de</strong>i estava<br />
claro. A neve tinha cessado <strong>de</strong> cair, Eu estava aquecido. Mas ele estava frio.<br />
Dei-lhe a pele, mas seu corpo estava enrijecido. Não sabia o que fazer. Então<br />
tirei um pedaço <strong>de</strong> papel <strong>de</strong> sua arca sob a cama e o <strong>de</strong>senhei, ali <strong>de</strong>itado. Havia<br />
um sorriso em sua face. Percebi que Deus estivera lá quando ele morreu. Que<br />
agora, Ele estava em mim, e que por causa do Padre Bernard, eu estaria<br />
aquecido para sempre.<br />
Engoliu <strong>de</strong> novo, e mais uma vez levei o copo à sua boca. Ele bebeu outro<br />
gole, <strong>de</strong>pois se <strong>de</strong>itou e fechou os olhos. Ficamos juntos na cela do monge por<br />
um tempo, esperando que a morte se tornasse vida <strong>de</strong> novo. Pensei na arca<br />
<strong>de</strong>baixo da cama <strong>de</strong> Padre Bernard e busquei na minha mesa <strong>de</strong> trabalho papel e<br />
carvão aliado, pronto para o momento em que seus <strong>de</strong>dos pu<strong>de</strong>ssem voltar a<br />
trabalhar.<br />
Coloquei-os em seu colo.<br />
— Quero ver como ele era — disse eu com firmeza. — Desenhe-o.<br />
Desenhe o seu monge para mim.<br />
Olhou para o papel, <strong>de</strong>pois para as próprias mãos. Observei a ponta <strong>de</strong><br />
seus <strong>de</strong>dos se dobrarem. Sentou-se na cama. Moveu sua mão direita até o<br />
pedaço <strong>de</strong> carvão e tentou fechar os <strong>de</strong>dos sobre ele. Vi-o estremecer <strong>de</strong> dor.