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Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev

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pouco <strong>de</strong> barulho. Quanto mais tento ficar imóvel, mais me sinto <strong>de</strong>sconfortável.<br />

Estico-me mais. Ele espera <strong>de</strong> novo. Somente agora fico alerta à possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> malícia. Se ele não fala, então não me sento como <strong>de</strong>veria. Ao parar, ergo<br />

minha mão esquerda até a frente do meu rosto, obscurecendo, <strong>de</strong>liberadamente,<br />

sua visão. Mãos. São sempre difíceis. Ossudas e carnudas ao mesmo tempo. Até<br />

mesmo nossos maiores pintores têm problemas com elas. No entanto, ele volta a<br />

<strong>de</strong>senhar rapidamente; <strong>de</strong>ssa vez riscando <strong>de</strong> maneira tão insistente que me<br />

<strong>de</strong>ixa com a maior vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter um papel.<br />

Depois <strong>de</strong> algum tempo, fico farta do meu fracasso e volto a pôr a mão no<br />

colo, flexionando os <strong>de</strong>dos para cima até ficarem como patas <strong>de</strong> uma aranha<br />

monstruosa sobre minha saia. Observo as juntas se tornarem brancas e vejo uma<br />

única veia latejar <strong>de</strong> encontro à pele, Como o corpo é estranho, tão cheio <strong>de</strong> si.<br />

Quando eu era mais jovem, tivemos uma escrava tártara, um caráter impetuoso,<br />

que sofria acessos; quando a acometiam, caía rígida no chão com espasmos, a<br />

cabeça se jogando para trás com tal ímpeto que seu pescoço retesava e esticava<br />

até parecer o <strong>de</strong> um cavalo, e seus <strong>de</strong>dos arranhavam o chão. Uma vez, saiu<br />

espuma <strong>de</strong> sua boca e tivemos <strong>de</strong> colocar algo entre seus <strong>de</strong>ntes para que ela não<br />

engolisse a língua. Luca, que agora acho que sempre esteve mais interessado no<br />

Diabo do que em Deus, acreditava que ela era possuída por um <strong>de</strong>mônio, mas<br />

minha mãe dizia que ela estava doente e <strong>de</strong>via <strong>de</strong>scansar para se recuperar. Meu<br />

pai ven<strong>de</strong>u-a, mais tar<strong>de</strong>, embora eu não tenha certeza <strong>de</strong> se ela era inteiramente<br />

honesta em relação à sua saú<strong>de</strong>. Mesmo que fosse doença, passaria facilmente<br />

por possessão. Se alguém pintasse Cristo expulsando <strong>de</strong>mônios, ela seria um<br />

mo<strong>de</strong>lo perfeito.<br />

Lodovica está roncando alto. Seria preciso um trovão para acordá-la. E<br />

agora ou nunca. Levanto-me.<br />

— Posso ver o que fez?<br />

Sinto seu corpo enrijecer. Percebo que quer escon<strong>de</strong>r o papel, mas<br />

também sabe que não seria apropriado. O que po<strong>de</strong> fazer? Pegar seu material e<br />

fugir? Agredir-me <strong>de</strong> novo? Se fizesse isso, logo se veria em uma mula <strong>de</strong> volta<br />

ao ermo norte. E por trás <strong>de</strong> todo o seu silêncio, não acho que seja um idiota.<br />

A minha coragem me abandona na beirada da mesa. Ele está tão perto,<br />

que posso ver a barba cerrada escura, e seu cheiro doce rançoso se torna mais<br />

penetrante. Faz-me pensar em <strong>de</strong>cadência e morte, e me lembro <strong>de</strong> sua violência<br />

na outra vez. Relanceio os olhos, apreensivamente, para a porta. O que<br />

aconteceria se alguém entrasse? Talvez ele esteja pensando a mesma coisa. Com<br />

um gesto <strong>de</strong>sajeitado, ele empurra o <strong>de</strong>senho sobre a mesa, com a face para<br />

cima, <strong>de</strong> modo que eu possa vê-lo sem me aproximar ainda mais.<br />

O cartão está cheio <strong>de</strong> esboços: um estudo <strong>de</strong> minha cabeça, <strong>de</strong>pois partes<br />

<strong>de</strong> meu rosto, meus olhos, minhas pálpebras semicerradas, com uma expressão

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