Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev
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Vinte e quatro<br />
ENQUANTO SAVONAROLA PREGAVA a sua cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vota, Erila e eu<br />
tomamos as ruas. A idéia <strong>de</strong> viver atrás <strong>de</strong> portas cerradas com somente a<br />
reclusão e <strong>de</strong>voção como companhia me fizeram gelar <strong>de</strong> medo. Mesmo sem a<br />
mancha dos pecados <strong>de</strong> meu marido, eu fracassaria em todos os testes que o<br />
Deus <strong>de</strong> Savonarola me aplicasse, e tinha arriscado <strong>de</strong>mais para, agora, penetrar<br />
resignadamente na escuridão.<br />
Quase todos os dias, íamos ao mercado. Embora as mulheres pu<strong>de</strong>ssem<br />
ser uma tentação nas ruas, o trabalho das compras e cozinha tinha <strong>de</strong> continuar a<br />
ser feito e, se o véu era espesso o bastante, ficava difícil saber quem era curiosa<br />
e quem era obediente. Não sei como está hoje o Mercato Vecchio <strong>de</strong> Florença,<br />
mas, na época, era uma maravilha: um circo <strong>de</strong> sensações. Como tudo o mais na<br />
nossa cida<strong>de</strong>, estava marcado pelo tumulto da subsistência, mas isso também lhe<br />
conferia a sua vivacida<strong>de</strong> e estilo. No interior da praça, havia loggias elegantes,<br />
arejadas, cada uma construída e <strong>de</strong>corada para os produtos que vendia. De modo<br />
que, sob os medalhões com retratos <strong>de</strong> animais, estavam os açougues, e sob os<br />
peixes, os peixeiros, competindo pela atenção das narinas com os pa<strong>de</strong>iros,<br />
curtidores, ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> frutas, e uma centena <strong>de</strong> barracas <strong>de</strong> comida<br />
fumegante, on<strong>de</strong> era possível se comprar qualquer coisa, <strong>de</strong> enguia ensopada ou<br />
lúcio assado, fresquinho do rio, a pedaços <strong>de</strong> carne <strong>de</strong> porco recheados <strong>de</strong><br />
alecrim e fatiados, pingando seu sumo do espeto. Era como se todos os aromas<br />
da vida — levedo, temperos, morte, <strong>de</strong>cadência — tivessem sido, todos eles,<br />
jogados juntos em uma gran<strong>de</strong> caçarola. Não vi nada que se comparasse a isso, e<br />
durante aqueles primeiros dias do inverno escuro do reinado <strong>de</strong> Deus em<br />
Florença, era como se tivesse tudo o que mais <strong>de</strong>sejasse e temesse per<strong>de</strong>r.<br />
Todo mundo tinha alguma coisa a ven<strong>de</strong>r, e aqueles que não tinham nada,<br />
vendiam o seu nada. Não havia nenhuma loggia para os mendigos, mas eles<br />
faziam ponto ainda assim — nos <strong>de</strong>graus das quatro igrejas que se erguiam<br />
como sentinelas ao redor da praça. Erila dizia que havia mais mendigos <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
que Savonarola tinha assumido o controle. Mas se era porque havia mais penúria<br />
ou mais <strong>de</strong>voção e, portanto, mais expectativa <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>, era difícil saber. Mas<br />
o que realmente me chamou a atenção foi o lutador. Estava em pé em um plinto<br />
perto da entrada oeste da praça e já se formara um ajuntamento à sua volta. Erila<br />
disse que já o conhecia há muito tempo, que, antes <strong>de</strong> ser um charlatão, tinha<br />
sido lutador profissional que enfrentava todos os que se apresentavam na parte<br />
<strong>de</strong> águas rasas e lamacentas do rio. Naquele tempo, ele tinha um agente que<br />
fazia as apostas por ele, e sempre havia muita gente gritando para os