Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev
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Vinte<br />
ELE CHEGARA EM CASA ESSA MANHA, enquanto Erila e eu <strong>de</strong>sfazíamos<br />
a arca, com pausas ocasionais para espiar pela janela a onda <strong>de</strong> pessoas fluindo<br />
em direção à praça, e como não veio imediatamente, enviou uma mensagem por<br />
seu criado, dizendo que eu não me preocupasse: não estava per<strong>de</strong>ndo nada, já<br />
que tinha informações seguras <strong>de</strong> que o Rei e seu exército eram po<strong>de</strong>rosos, mas<br />
estavam tão exaustos, que seguiam morosamente em direção à cida<strong>de</strong>, e que só<br />
chegariam praticamente ao entar<strong>de</strong>cer.<br />
Suas notícias eram tão recentes que até mesmo Erila ficou impressionada.<br />
O que era ótimo, pois ela e eu estávamos um pouco perdidas em nosso novo<br />
papel <strong>de</strong> patroa e criada nessa casa sombria e ventosa.<br />
Nossa comunicação <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a noite <strong>de</strong> núpcias havia sido muda. Eu tinha<br />
<strong>de</strong>senhado esboços até o amanhecer e dormido até muito tar<strong>de</strong> e, como não é <strong>de</strong><br />
admirar, ela confundiu o meu sono tão longo com um sinal <strong>de</strong> energia nupcial.<br />
Quando me perguntou sobre minha saú<strong>de</strong>, respondi que estava bem, e baixei os<br />
olhos, <strong>de</strong>ixando claro que não queria falar nisso. Oh, eu teria dado qualquer<br />
coisa no mundo em troca <strong>de</strong> lhe contar. Estava precisando <strong>de</strong>sesperadamente <strong>de</strong><br />
uma confi<strong>de</strong>nte e, até então, acho que lhe contava tudo o que me acontecia. E os<br />
segredos que eu tinha eram pequenos e rebel<strong>de</strong>s, inofensivos a qualquer um,<br />
menos a mim mesma. Apesar <strong>de</strong> sermos próximas, ela era uma escrava e até<br />
mesmo eu percebia que, consi<strong>de</strong>rando-se tal tentação, as forças da intriga<br />
po<strong>de</strong>riam se <strong>rev</strong>elar mais potentes do que a sua lealda<strong>de</strong>. Ou, <strong>de</strong> qualquer<br />
maneira, essa era a <strong>de</strong>sculpa que tinha dado a mim mesma ao <strong>de</strong>spertar naquela<br />
tar<strong>de</strong> em minha cama <strong>de</strong> casada, meus esboços espalhados à minha volta. Talvez<br />
a verda<strong>de</strong> fosse que eu mal suportava lembrar o que tinha acontecido, muito<br />
menos partilhá-lo com outra pessoa.<br />
Por isso, quando Cristoforo veio até nós, sentadas à janela, arrumando<br />
lençóis e observando a multidão, ela já tivesse razão para <strong>de</strong>sconfiar. E, então, se<br />
levantou e saiu sem nem mesmo olhar para ele. Ele esperou até a porta se fechar<br />
atrás <strong>de</strong>la para falar.<br />
— Ela é muito íntima, a sua escrava?<br />
Assenti com a cabeça.<br />
— Fico feliz. Porque lhe fará companhia. Mas acho que não lhe conta<br />
tudo, certo?<br />
Era uma pergunta e uma afirmação ao mesmo tempo.<br />
— Não — repliquei. — Não conto.<br />
No silêncio que se seguiu, ocupei-me em dobrar minha roupa, meus olhos