Orelha do livro Oliver Sacks é um neurologista que reivindica ... - Stoa
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grande aprecia<strong>do</strong>ra de histórias,<br />
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embora não conseguisse aprender a ler (apesar de<br />
tentativas assíduas e mesmo fren<strong>é</strong>ticas); implorava à<br />
avó e a outras pessoas <strong>que</strong> lessem para ela. ”Rebecca<br />
tem fome de histórias”, disse sua avó; e esta,<br />
felizmente, a<strong>do</strong>rava ler histórias e tinha <strong>um</strong>a bela voz<br />
para a leitura, <strong>que</strong> mantinha Rebecca extasiada. E não<br />
só histórias — poemas tamb<strong>é</strong>m. A poesia parecia ser<br />
para Rebecca <strong>um</strong>a necessidade ou fome descomunais—<br />
<strong>um</strong>a forma necessária de alimento, de realidade para<br />
sua mente. A natureza era bela, por<strong>é</strong>m muda. Ela<br />
precisava <strong>que</strong> o mun<strong>do</strong> lhe fosse reapresenta<strong>do</strong> em<br />
imagens verbais, em linguagem, e parecia não ter<br />
dificuldade para acompanhar as metáforas e símbolos<br />
inclusive de poemas muito profun<strong>do</strong>s, em <strong>um</strong> contraste<br />
marcante com sua incapacidade para as proposições e<br />
instruções simples. A linguagem <strong>do</strong> sentimento, <strong>do</strong><br />
concreto, das imagens e símbolos, formava <strong>um</strong> mun<strong>do</strong><br />
<strong>que</strong> ela amava e no qual, em <strong>um</strong> grau notável, era<br />
capaz de penetrar. Embora fosse inepta<br />
conceitualmente (e ”proposicionalmente”), ela se<br />
sentia à vontade com a linguagem po<strong>é</strong>tica, e era ela<br />
própria, de <strong>um</strong> mo<strong>do</strong> vacilante, enternece<strong>do</strong>r, <strong>um</strong>a<br />
esp<strong>é</strong>cie de poeta ”primitiva” instintiva. Metáforas,<br />
figuras de linguagem, analogias surpreendentes<br />
vinham-lhe com naturalidade, embora de <strong>um</strong> mo<strong>do</strong><br />
imprevisível, na forma de súbitas exclamações ou<br />
alusões po<strong>é</strong>ticas. Sua avó tinha <strong>um</strong>a religiosidade<br />
serena, e isso tamb<strong>é</strong>m acontecia com Rebecca: ela<br />
amava o acender das velas <strong>do</strong> sabá, as bênçãos e<br />
orações <strong>que</strong> entremeavam o dia judaico; a<strong>do</strong>rava ir à<br />
sinagoga, onde era estimada (e vista como <strong>um</strong>a filha de<br />
Deus, <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie de inocente, <strong>um</strong>a ingênua santa), e<br />
compreendia totalmente a liturgia, os cânticos, preces,<br />
ritos e símbolos <strong>que</strong> compõem o serviço orto<strong>do</strong>xo. Tu<strong>do</strong><br />
isso lhe era possível, acessível, preza<strong>do</strong>, apesar de seus<br />
graves problemas perceptivos e espaço-temporais e