Orelha do livro Oliver Sacks é um neurologista que reivindica ... - Stoa
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Na vez seguinte em <strong>que</strong> a vi, tu<strong>do</strong> foi muito<br />
diferente. Não era <strong>um</strong>a situação de teste, de<br />
”avaliação” na clínica. Saí para dar <strong>um</strong>a volta — era <strong>um</strong><br />
lin<strong>do</strong> dia de primavera —, dispon<strong>do</strong> de alguns minutos<br />
antes de começar o expediente na clínica, e então<br />
encontrei Rebecca, sentada em <strong>um</strong> banco, fitan<strong>do</strong><br />
serenamente a vegetação primaveril, com óbvio deleite.<br />
Sua postura nada tinha da falta de jeito <strong>que</strong> tanto me<br />
impressionara antes. Ali sentada, com <strong>um</strong> vesti<strong>do</strong> leve,<br />
o rosto sereno e <strong>um</strong> tênue sorriso, ela subitamente me<br />
lembrou <strong>um</strong>a das moças de Tchekov — Irene, Anya,<br />
Sonya, Nina — vista contra o pano de fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> jardim<br />
de cerejeiras tchekoviano. Ela poderia ser qual<strong>que</strong>r<br />
moça aprecian<strong>do</strong> <strong>um</strong> belo dia de primavera. Essa foi<br />
minha visão h<strong>um</strong>ana, <strong>que</strong> contrastava com a<br />
neurológica. Quan<strong>do</strong> me aproximei, ela ouviu meus<br />
passos e se virou, lançou-me <strong>um</strong> largo sorriso e<br />
gesticulou, sem <strong>um</strong>a palavra. ”Veja o mun<strong>do</strong>”, parecia<br />
dizer. ”Que lin<strong>do</strong> <strong>é</strong>.” E então irromperam, em arrancos<br />
jacksonianos, exclamações repentinas, singulares,<br />
po<strong>é</strong>ticas: ”primavera”, ”nascimento”, ”crescimento”,<br />
”despertar”, ”ganhar vida”, ”estações”, ”tu<strong>do</strong> em seu<br />
tempo”. Vi-me pensan<strong>do</strong> no<br />
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Eclesiastes: ”Tu<strong>do</strong> tem o seu tempo, e há tempo para<br />
to<strong>do</strong> o propósito debaixo <strong>do</strong> c<strong>é</strong>u. Tempo de nascer,<br />
tempo de morrer, tempo de plantar e tempo [...]”. Era<br />
isso <strong>que</strong> Rebecca, no seu jeito desconexo, estava<br />
exclaman<strong>do</strong> — <strong>um</strong>a visão das estações, <strong>do</strong>s tempos,<br />
como a <strong>do</strong> Prega<strong>do</strong>r. ”Ela <strong>é</strong> <strong>um</strong>a Eclesiastes retardada”,<br />
pensei comigo. E, nessa frase, as duas visões <strong>que</strong> eu<br />
tinha dela — como unia deficiente mental e <strong>um</strong>a<br />
simbolista—encontraram-se, colidiram e se fundiram.<br />
Ela tivera resulta<strong>do</strong>s consterna<strong>do</strong>res no teste <strong>que</strong>, em<br />
certo senti<strong>do</strong>, destinava-se, como to<strong>do</strong>s os testes<br />
neurológicos e fisiológicos, não só a revelar, a trazer à<br />
luz as deficiências, mas a decompor a pessoa em<br />
funções e d<strong>é</strong>ficits. Ela se desintegrara horrivelmente